Comorbidades sociais do racismo em uma sociedade pandêmica

A crise pandêmica no Brasil vista pelo prisma do marcador racial da diferença.

Diplonite
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7 min readMar 2, 2024

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Por Guilherme Pessoa (13 de maio de 2021)

Tratar do racismo à brasileira como um mecanismo de poder social, econômico e, por conseguinte, político é traçar a apartação socioeconômica e simbólica dos grupos racialmente definidos no ínterim social, pois segundo o filósofo do direito Silvio Luiz de Almeida:

Assim como o privilégio faz de alguém branco, são as desvantagens sociais e as circunstâncias histórico-culturais, e não somente a cor da pele ou o formato do rosto, que fazem de alguém negro.

Essa demarcação, mesmo que velada e negada por um discurso comum a todas as esferas da sociedade, pode ser tida como uma variável daquilo que o psiquiatra martinicano Frantz Fanon definiu, ao falar sobre a estrutura social colonial, como “mundo compartimentado” ou “mundo dividido em dois”. Ou seja, salvo as diferenças do desenvolvimento histórico e concreto das duas estruturas sociais, é evidente que os “dois brasis” vistos na crise da pandemia de Covid-19 representam comum acordo com tal lógica: uma face que domina e lucra exponencialmente sob a pauperização e o sofrimento da outra. A maioria da população, sendo negra, pobre e periférica é, nesse sentido, vilipendiada de forma direta dentro do afunilamento da crise de acumulação de capital.

Em concordância com Fanon, Thula Pires, professora de direito constitucional da PUC-Rio, nos brinda com uma constatação enfática do cenário do mundo compartimentado, pois, quando pensamos em cidadania, democracia, equidade, em suma, em preconizações políticas e morais democráticas — da democracia burguesa, digamos melhor –, temos que o próprio traço ontológico entre a zona do ser e a “zona do não-ser” trabalhado pelo psiquiatra e revolucionário martinicano seria algo fulcral para a compreensão da negação da condição de humanidade aos condenados das terras brasileiras. Para a autora, a inefetividade das garantias constitucionais fundamentais na zona do não ser não é um problema a ser considerado como violação de direitos ou como falta de vontade política para fazer valer a lei. O não acesso a direitos pela zona do não ser é a mais bem-acabada forma de atuação do direito, nos termos em que ele foi pensado para atuar, portanto, como atributo exclusivo da zona do ser. As categorias jurídicas não foram pensadas a partir da realidade vivida por quem habita a zona do não ser e não se comunicam com o sentido e amplitude de nossas reivindicações por igualdade, saúde, moradia, propriedade, liberdade, vida, segurança.

Afirmar essa nítida relação estrutural paramentada pela opressão racial não é, contudo, esquecer da correlação entre raça, classe e gênero. Pelo contrário, é perceber como se perpetua a relação entre as “muletas” e o sistema que delas utiliza para preservar suas formas de acumulação. Nesse sentido, as comorbidades sociais do racismo indicam meios fundamentais para as lesões prévias ao vírus; a maior propensão e vulnerabilidade material e psicológica aos efeitos nefastos da pandemia: a diferença salarial entre mulheres brancas e homens negros; a concentração de renda; a vulnerabilidade ao vírus no que tange aos empregos presenciais; os burnouts que acarretam na exaustão física e emocional. Tudo isso demonstra que o racismo estrutural potencializa o cenário distópico para o qual apresentamos como a zona do não-ser e seus componentes. Podemos, portanto, prosseguir os apontamentos concernentes às desigualdades sociais refletidas no acesso à vacinação, ao mundo do trabalho e à assistência estatal sob o jugo do fator racial.

Da questão da vacinação

Segundo o levantamento promovido pela Agência Pública, até o dia 14 de março de 2020, apenas 8,5 milhões de pessoas haviam sido vacinadas — primeira dose — no país. Entre essa porcentagem de vacinados — em maioria dos sujeitos que comportam o grupo de risco e as linhas de frente no enfrentamento da pandemia — tornou-se visível que pessoas brancas haviam obtido mais imunizações do que as não-brancas, fundamentalmente as negras. Esse caso representa, de forma uníssona aos argumentos supracitados, uma síntese da organização racista da sociedade brasileira, posto que os fatores que explicam a querela podem ser compreendidos como comorbidades sociais. Mesmo representando 56,2% da população nacional, o grupo de pessoas negras — pretos e pardos, segundo o IBGE –, teve, segundo o levantamento, um percentual de 1,48% de vacinados, em contrapartida aos 3,66% do grupo de pessoas brancas. Isso deu-se, segundo o levantamento, pela baixa expectativa de vida da população negra brasileira — 30% a menos na faixa etária dos 60 anos ou mais quando em relação aos brancos segundo o Censo Demográfico de 2010 — e pela ineficiência da definição de quais condicionalidades concernentes ao chamado grupo de risco/prioritário. Nesse sentido, as posições menos valorizadas no mercado de trabalho da primeira linha de enfrentamento ao covid — auxiliar de serviços gerais em unidades de saúde, bem como seguranças e terceirizados –, em maioria ocupadas por pessoas negras e periféricas, não foram diretamente englobadas ao plano primeiro de vacinação.

Diante disso, mesmo sendo cristalina a distinção social e racial no que tange aos casos de morte e de contágio por Covid-19–10% a mais de casos e 92 mortes por 100 mil habitantes entre negros quando em relação a 88 mortes por 100 mil habitantes entre os brancos no Brasil –, efetividade alguma é tida no sentido de contornar o problema. Logo, seguindo o levantamento, pessoas negras tendem a acessar menos e em menor tempo os leitos de UTI destinados ao tratamento do Covid-19, bem como a possuírem o trágico primeiro lugar no pico de mortes por raça/cor — (15.246 mil) em maio de 2020 contra tristes 11.900 mil mortes entre as pessoas brancas em julho do mesmo ano — dados obtidos até o dia 14 de março de 2021. Um outro agravante que denuncia a negligência referida seria justamente a subnotificação do marcador raça/cor nos dados coletados até maio do ano passado. Assim, os dados obtidos a partir dos registros de casos de Covid-19 que desconsideravam o marcador de raça/cor, entre fevereiro de 2020 e o mesmo mês em 2021, demonstram que a queda abrupta entre o início do período — de 66% em fevereiro para 17% em outubro do ano passado — e o final da amostra de tempo, ou seja, 22% em fevereiro de 2021, conservam a subnotificação da distinção racial dentre os casos. A distribuição, a alocação e o próprio acesso à vacinação têm, portanto, nítidas condicionalidades que perpassam a questão racial à brasileira.

Mundo do trabalho e auxílio emergencial no cenário pandêmico: qual o peso do racismo?

Com base no estudo do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento — Cebrap — intitulado “Desigualdades raciais e de gênero no mercado de trabalho em meio à pandemia”, com dados retirados das plataformas Pnad e Pnad Covid-19, temos que a taxa de desocupação ao longo do ano de 2020 teve um acréscimo de 5,18% — de 11,45% para 16,63% — entre as pessoas negras, sendo consideravelmente maior em relação ao percentual dentre as pessoas brancas — de 9,17% para 11,58%. Muito embora tal estatística demonstre o tema debatido, o exemplo quanto ao “”teletrabalho”” nas “”profissões liberais”” é pertinente para a reflexão inicial acerca do racismo estrutural. Assim sendo, o home office foi mais acessível a brancos ao longo do ano passado — 17,9% em maio e decresce para 12,4% em novembro — se comparado ao acesso tido por negros — 9,0% e 6,0%, respectivamente -, mas isso não indica que pessoas brancas retornaram ao trabalho presencial mais cedo que as pessoas negras, posto que, ainda segundo o trabalho, a maioria dos profissionais negros com diploma de curso superior são professores (34,8%) e, tendo menor porcentagem nas demais profissões liberais se comparados a pessoas brancas, não retornaram aos seus postos nas escolas. A dissonância está na distribuição dos cargos entre tais grupos.

Por último, mas tão importante quanto, o estudo demonstra a dependência de cerca de 10,6 milhões de habitantes do país quanto a política distributiva do auxílio emergencial em voga até janeiro deste ano. Dentre essa camada brasileira — 5% da população nacional -, temos um alarmante, contudo, não surpreendente número de 67% de negros, completado por 31,4% de brancos e 1,1% de amarelos e indígenas. Finalizando, temos dados fulcrais que demonstram não somente números, mas sim o peso da questão racial no Brasil dentro de uma pandemia mundial, assim como de um projeto de austeridade fiscal governamental majoritariamente contrário às políticas públicas que poderiam ser aliadas incipientes da mitigação do problema emergencial de renda no atual cenário catastrófico. É inegável, portanto, o caráter organizador não somente do racismo, mas também do sexismo e da luta de classes para a questão da alocação dos principais efeitos da destruição humanitária nas costas dos trabalhadores, das minorias sociais e dos desassistidos. Mulheres negras que “chefiam” suas casas são, fundamentalmente, a personificação dos alvos da crise estrutural do capitalismo.

Estamos diante, portanto, de um quadro que requer não somente o enfrentamento adequado à pandemia, mas também às questões estruturais de um sistema em definhamento que produz a morte — nos mais variados sentidos — dos trabalhadores, das minorias sociais, em suma, dos condenados da terra. Esse é o ponto fundamental da relação entre crise do capitalismo, racismo e pandemia. Um potencializa o outro e, consequentemente, agrava o processo de destruição da vida minimamente digna para a zona do não-ser.

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