Cristianismo à Chinesa

Por que o Partido Comunista quer tornar o Cristianismo mais chinês?

Diplonite
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12 min readMar 2, 2024

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Por João Victor Silva Rodrigues (15 de abril de 2021)

Há alguns anos, a atitude do governo chinês em relação à população da etnia Uigur na região autônoma de Xinjiang tem recebido bastante notoriedade. A comunidade internacional acusa a China de estar promovendo um genocídio deste povo muçulmano, e as evidências que corroboram estes argumentos são alarmantes. Existem acusações que vão desde o estabelecimento de campos de internação e de reeducação política e cultural para os uigures, trabalho forçado, até alegações de esterilização em massa de mulheres uigures de modo a limitar o crescimento de sua população. O Partido Comunista Chinês (PCC) defende que suposições como essas são infundadas, e que as medidas de segurança no território de Xinjiang são motivadas pela prevenção ao terrorismo e ao extremismo religioso, além de argumentar que os campos são uma forma efetiva de reeducar seus simpatizantes. Apesar da resposta, a reprovação da comunidade internacional parece ser unânime, e a Organização das Nações Unidas (ONU) está negociando uma visita à região com o governo da China. Esta situação é preocupante e sua discussão foi desenvolvida por Yasmin Noronha nas mídias sociais do Diplonite. Contudo, não é possível pensar nisso como um movimento isolado quando, na verdade, faz parte de um extenso plano do PCC para a religião em território nacional.

Com efeito, em 2017, o governo estabeleceu as “Regulações para Assuntos Religiosos” que, entre suas propostas, busca reduzir a influência de agentes estrangeiros em instituições religiosas chinesas, que devem gozar de independência e autogovernança, segundo o documento. Nos anos seguintes, o Partido Comunista publicou planos de cinco anos para promover a sinificação das cinco religiões oficialmente reconhecidas no país: o Islamismo, o Taoismo, o Budismo e o Cristianismo — este que se divide entre Protestantismo e Catolicismo. Os documentos mencionados criam, em geral, uma reforma na qual as instituições religiosas e os indivíduos devem aderir às determinações sob pena de multas em caso contrário, além de criar a exigência de permissões especiais para a instrução na fé e dificultar a aquisição de documentos para manter os templos funcionando dentro dos parâmetros da lei.

As relações da República Popular com as crenças sancionadas são distintas; a mencionada anteriormente tratando dos uigures muçulmanos é manifestada de maneira mais intensa e agressiva enquanto, por exemplo, a relação com o Budismo tibetano, embora seja restritiva, não atinge os níveis da repressão em Xinjiang. Com pouca frequência, todavia, é discutida a relação do Partido Comunista Chinês com o Cristianismo no país. Devido ao nível de atividade não-sancionada, é difícil definir o número exato de cristãos na China. Estimativas, em geral, variam entre 60 e 80 milhões de adeptos desta fé; há especulações, por sua vez, que atingem a marca de 97,2 milhões, segundo a organização Open Doors. A realidade é que, apesar de representar uma minoria da grande população sínica (cerca de 6,8% se utilizado a maior estimativa de cristãos), há um contingente extremamente relevante destes religiosos no país, o que traz uma série de questões a serem discutidas.

O desenvolvimento histórico da religião na China certamente merece menção, de modo a entender o que decorre hoje. Com o estabelecimento do governo comunista na China após a Revolução em 1949, não houve uma oposição imediata à religião, o que permitiu que grupos religiosos pudessem operar regularmente; em termos práticos, no entanto, existem relatos de destruição de templos, perseguição de membros e outras medidas restritivas que buscavam impedir a resistência à liderança incipiente. O advento da Guerra da Coreia, em 1950, criou um sentimento de apreensão quanto às ameaças herdadas do regime anterior e trouxe à tona o combate a influências externas. Quanto às religiões tradicionais chinesas, que o Partido Comunista considerava como “seitas supersticiosas”, a supressão foi grande. A estratégia para os cinco grandes credos já citados — Protestantismo, Catolicismo, Islamismo, Budismo e Taoísmo — desenvolveu-se de maneira a buscar a cooptação dos grupos religiosos e seus líderes, e para tal foram criadas instituições para regulamentação de sua atividade.

Em outubro de 1949, Mao Zedong proclama a fundação da República Popular da China na Praça da Paz Celestial. Foto de Domínio Público

Quanto ao Cristianismo, as reações foram variadas entre as denominações cristãs. Para o Protestantismo, houve a criação do Movimento Patriótico das Três Autonomias (tradução livre do chinês 三自爱国运动 — Sanzì Aiguo Yundong), promovida por Wu Yaozong, líder da Young Men’s Christian Association (YMCA) na China. O movimento, presente até os dias de hoje, guiava-se por três princípios básicos: as igrejas deveriam ser autocomandadas, autoapoiadas e autopropagantes, o que se traduz na autonomia plena de qualquer tipo de suporte vindo do exterior. Essa estratégia fez com que, até 1954, todas as igrejas protestantes estrangeiras no país estivessem sob a supervisão do Movimento Patriótico. Apesar de, em grande parte, a atitude das instituições protestantes ter sido de conformidade, a medida não veio sem resistência, especialmente em meio ao combate do que o PCC considerava como resquício imperialista no país. Da parte do Catolicismo, a reação foi diversa do Protestantismo. Por ocasião da relação intrínseca e inseparável entre as igrejas católicas do mundo e a Santa Sé, junto com o Papa, seu líder, torna o Cristianismo católico inerentemente internacional, implicando alguma relação com o estrangeiro. Isso não poderia ser aceito, porém, sob alegação de imperialismo e da possibilidade de influência de outros Estados no país. Foi criado, em 1951, o que futuramente se chamaria Associação Patriótica Católica, porém o convite para a adesão ao movimento foi rechaçado por leigos, presbíteros e até o próprio Papa Pio XII, como está descrito na carta encíclica Ad Sinarum Gentem de 1954.

Desde o desenvolvimento institucional voltado para a religião, a repressão de figuras religiosas (como o exemplo de Watchman Nee e Gong Pinmei), leigos e instituições foi recorrente. Essa repressão apenas acentuou-se com o Grande Salto Adiante, plano do governo de Mao Zedong para aumentar ainda mais o desenvolvimento chinês após o primeiro Plano dos Cinco Anos de 1953. O Grande Salto Adiante, implementado em 1957, foi definido, resumidamente, pela mobilização da massa de trabalhadores desempregados do campo, metas ambiciosas para os principais setores da economia, apoio a métodos de produção industrial tradicionais e modernos e a desconsideração de normas técnicas e de especialistas em prol de resultados econômicos melhores (este aspecto aconteceu em meio a uma grande descredibilidade de intelectuais no país, tidos em momentos como opositores do governo de Mao). O resultado final das medidas foi contrário àquilo que Mao desejava. Devido à histeria que gerou um desgaste excessivo dos trabalhadores aderentes à ideologia, houve uma grande escassez de abastecimento alimentício, o que levou a China a uma grande onda de fome: em torno de 15 a 30 milhões de mortos desta forma. Dentro do plano, a religião foi entendida como algo improdutivo economicamente, uma vez que o clero estaria lá apenas para colher benesses das medidas implementadas. Assim, templos foram realocados para a produção industrial e religiosos direcionados para as fábricas.

Isso pode ser visto como um presságio para a Revolução Cultural estabelecida na China em 1966. Ao buscar recuperar-se das consequências do Grande Salto Adiante para o país, o presidente do Partido Comunista intentou restabelecer o progresso do socialismo. Animando a juventude chinesa a apoiar suas medidas, o então formado Exército Vermelho teve a missão de combater quatro elementos que teriam restado do capitalismo e imperialismo no país: as velhas ideias, a velha cultura, os velhos hábitos e os velhos costumes. A Revolução Cultural representou, com efeito, o fim da liberdade religiosa de facto no país. Assim, as diferentes religiões optaram por continuar suas atividades de maneira oculta, temendo a grande supressão que estava em curso. As forças do governo destruíram templos, cometeram saques, prisões, abusos, tortura e assassinatos, e a religião era um de seus principais alvos. Apesar do fim oficial da Revolução em 1969, seus efeitos puderam ser sentidos até o final da década de 1970.

Muitas igrejas foram fechadas e foram reaproveitadas na promoção do culto ao líder Mao durante a Revolução Cultural. Foto de Domínio Público

Com a morte de Mao Zedong em 1976, o Partido Comunista entrou em uma difícil missão de substituir o líder. Ao final, a figura de Deng Xiaoping surgiu com grande relevância. O político, apesar de nunca atingir o posto de presidente, promoveu uma série de reformas que auxiliaram a tornar a China no país que conhecemos hoje, especialmente ao abrir a economia chinesa às forças de mercado. No que tange à religião, há um retorno ao status quo ante, que faz com que ela possa ser praticada novamente de maneira aberta, mas ainda sob o jugo institucional. Na prática, religião, naquele momento, tornara-se um tema secundário, mas não esquecido. O “Ponto de Vista Básico e Política sobre a Questão Religiosa durante o Período Socialista de nosso País”, também conhecido como Documento nº 19, concede existência legal para o Taoísmo, o Budismo, o Islamismo e o Cristianismo em suas duas denominações, desde que sob a tutela de suas respectivas associações patrióticas. O documento, corroborado pela Constituição de 1982, traz, porém, os pilares das medidas que o governo chinês implementa hoje para o Cristianismo. A definição do que é um xie jiao — culto heterodoxo– que não se conforma com as práticas aprovadas pelo governo, deixa margem para a deliberação do Partido Comunista no documento e permite que medidas restritivas sejam tomadas legalmente em defesa do interesse nacional.

Ao longo de todo esse período após a Revolução Cultural, ambos Protestantismo e Catolicismo enfrentaram problemas. Para aquele, em grande parte, foi o baixo contingente de treinamento formal para pastores e representantes devido às resoluções governamentais na época; embora este ponto se aplique ao Catolicismo, algo marcante para esta denominação foi a ruptura entre bispos nomeados pelo Vaticano e os seus seguidores e os bispos nomeados pelo Partido Comunista e seus adeptos. Esta cisão, em parte, ajuda a explicar um dos motivos para a estagnação de católicos no país, especialmente se comparado ao número de fiéis protestantes.

Tendo os componentes históricos em vista, o sociólogo Fenggang Yang determina que as medidas restritivas do governo chinês criam um mercado religioso tripartite, no qual sua manifestação é bem definida para o Cristianismo. Encontram-se, assim, os mercados vermelho, negro e cinza da religião. O primeiro deles trata de todo e qualquer grupo, organização religiosa, atividade ou praticante que é oficialmente aceito pelo governo, tido como legal. Ele é sujeito ao comando do PC e permeado pela ideologia comunista oficial, com ensinamentos que devem o amor ao país em primeiro lugar, e depois à religião. O mercado negro refere-se àqueles grupos, atividades e praticantes que são oficialmente proibidos pelo governo, e sua atividade dá-se no submundo da religião, de maneira oculta para evitar possíveis consequências legais. Por fim, há o mercado definido como cinza, no qual seus componentes possuem um status legal ambíguo. Isto se manifesta, segundo o autor, por meio de atividades religiosas ilegais em grupos religiosos que operam legalmente e práticas religiosas manifestadas em cultura ou ciência, não na religião. A dinâmica pela qual este mercado opera, apesar de contraintuitiva, indica que, à medida em que a restrição aumenta, necessariamente maior será o mercado cinza, o que na prática manifesta-se com as igrejas caseiras (ou domésticas), um elemento importante do aumento do número de cristãos chineses.

Partindo desta divisão do mercado de religião chinês, é possível chegar ao ponto que dá nome a este artigo: a sinificação do Cristianismo, que significa tornar a crença mais chinesa. As medidas de restrição quanto aos credos, implementadas pelo Partido Comunista desde sua ascensão ao poder em 1949, e especialmente relativas ao Cristianismo, uma crença que teve seu desenvolvimento em grande parte no ocidente, fez com que o então novo governo enxergasse sua difusão em solo chinês como perigosa, disruptiva aos planos para o país. Desta forma, há pensadores, como Xu Yihua, os quais argumentam que, para a China, a religião trata-se de um elemento de segurança nacional. De fato, isso é confirmado pelos eventos que ocorrem hoje com os uigures e, de maneira menos agressiva, com os cristãos. A sinificação é, pois, uma maneira de garantir que o Cristianismo não se tornará uma forma de dissidência dos princípios socialistas que norteiam as instâncias governamentais, e que nenhum tipo de insurgência ocorrerá devido a influências externas nas religiões, o que explica, por exemplo, as três autonomias da Associação Patriótica Protestante. Para tal, a vigilância em igrejas é constante, ritos como o batismo são restritos apenas para os que atingirem a maioridade (o que vai de encontro com a noção católica do rito), trechos de livros educacionais e até da Bíblia são alterados ou censurados para evitar subversão. Desta maneira, muitos buscam uma fé mais próxima da original em igrejas dos mercados cinza e negro.

Igreja demolida por representantes do governo em Zhenzhou, Henan. Foto de Ng Han Guan/AP Images

O que muitas vezes não é dito é que, desde sua chegada em solo chinês, muito antes da Revolução em 1949, o Cristianismo tem se desenvolvido de modo a ser sinificado. Com Matteo Ricci, padre jesuíta, que chegou na China em 1583, houve uma das primeiras investidas relevantes para a introdução do Cristianismo, que foi feita por meio da comparação e utilização de elementos do Confucionismo para atingir seus objetivos. A teologia e o proselitismo que foram desenvolvidos desde então, protestantes ou católicos, possuem influências dos esforços de Ricci. Mais recentemente, as medidas de restrição religiosa trouxeram à luz a adaptabilidade do Cristianismo, com teologias liberais alinhadas com a proposta do Partido Comunista, que colocam uma interpretação bíblica alinhada com um contexto de reforma social, sem considerar a Bíblia como um texto necessariamente inspirado por Deus ou sem falhas; e outras teologias mais tradicionais, que defendem a infalibilidade da Bíblia, sua inspiração divina e os dogmas associados ao Cristianismo. Outro respeito interessante é a existência do que se nomeia como “cristão cultural”. Podem ser definidos como indivíduos que simpatizam com os elementos morais e éticos do Cristianismo sem, necessariamente, aderir a alguma denominação. Seu fenômeno é interessante do ponto de vista dos costumes que podem ser adquiridos, mas mais uma vez um ponto de contenção e que pode ir de encontro com os principais valores do socialismo chinês.

Apesar dos esforços do PCC, a rede global de cristãos expandiu-se devido, em grande parte, ao maior acesso à informação e comunicação das últimas décadas, o que torna mais relevante o papel de whistleblowers (informantes), o intercâmbio teológico e o suporte externo que as instituições cristãs na China podem receber, todos à revelia dos anseios governamentais. Ademais, os meios eletrônicos tornaram-se especialmente relevantes durante a pandemia do COVID-19, onde plataformas como o WeChat estão repletas de grupos de estudo bíblico, e as igrejas domésticas, agora de forma virtual, encontraram um aumento no número de participantes em suas atividades. Desta forma, mesmo com os possíveis contratempos que uma quarentena poderia causar aos fiéis, aparentemente a tecnologia auxiliou a religião a suplantar, de certo modo, as dificuldades.

Papa Francisco se encontra com peregrinos durante sua visita à China em 2018. Foto de L’Osservatore Romano

Há, ainda, muitos desafios que as vertentes cristãs devem enfrentar na China. Para os católicos, a dupla hierarquia existente, entre a autoridade do Papa e do Partido Comunista sobre o Catolicismo, é um ponto a ser acompanhado. A recente medida do Papa Francisco em acatar bispos nomeados pelas autoridades chinesas foi um passo no aprofundamento das relações entre as partes, mas recebeu críticas daqueles católicos do mercado negro que permaneceram fiéis ao Santo Padre. Para o Protestantismo (e em menor medida para o Catolicismo devido à rigidez teológica), o monitoramento doutrinário efetivo é de grande importância, de modo a impedir o surgimento de seitas radicais. Isto prova-se uma tarefa difícil por conta de sua pluralidade de denominações e descentralização fora do controle das instituições religiosas chinesas.

O Partido Comunista chinês não quer eliminar o Cristianismo no país, mas sim cooptá-lo de modo que possa reforçar o interesse nacional também por meio da religião e evitar dissidência. Os meios para atingir estes objetivos podem ser mais implícitos com multas e vigias em igrejas, ou ainda mais agressivos com o fechamento de igrejas e prisão de líderes. Independentemente das críticas que estas medidas possam receber, a realidade é que os cristãos da China são tão fiéis quanto quaisquer outros ao redor do mundo. O processo de sinificação cristã não se iniciou com os documentos dos últimos anos, mas desde o começo do desenvolvimento do Cristianismo na China, o que trouxe traços marcadamente chineses para a crença. Por fim, resta apenas saber qual posição a religião cristã ocupará dentro do imaginário da sociedade chinesa: se tornar-se-á parte da cultura chinesa, se será absorvida pela cultura chinesa ou se manterá suas características essenciais e se estabelecerá como uma minoria considerável. Tendo a me alinhar com a última asserção.

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