De Helsinque a Moscou

O voo de Mathias Rust através da Cortina de Ferro e sua relação com a Guerra Fria

Diplonite
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5 min readMar 1, 2024

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Por Tales de Leão (originalmente publicado em 17/09/2020)

Foto de capa: Reprodução / Aventuras na História — UOL.

É dia 28 de maio de 1987, plena Guerra Fria, e nos céus de Moscou, capital da União Soviética (URSS), um avião monomotor da Alemanha Ocidental sobrevoa a Praça Vermelha. Após ter passado pela defesa aérea soviética e sobrevoar três vezes a Praça, o avião pousa a praticamente 30 metros das muralhas do Kremlin, sede do Soviete Supremo da União Soviética, e manobra até a frente da Catedral de São Basílio. De dentro do avião não sai um soldado ou agente ocidental, mas um alemão-ocidental programador de computador e piloto-amador de 19 anos: Mathias Rust.

Logo após o pouso, o avião estava cercado de pessoas. A atmosfera era festiva, ao verem o jovem piloto em sua jaqueta vermelha as pessoas sorriam, apertavam sua mão e alguns até pediam autógrafos. Quando um russo questionou, em inglês, o que ele estava fazendo ali, Rust falou que viera do Ocidente e que queria entregar a Gorbachev uma mensagem que ajudaria na pacificação das relações com o lado de fora da Cortina de Ferro. Porém, em pouco tempo, o jovem foi detido pelas autoridades soviéticas, sem ter contato com o Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética, Mikhail Gorbachev. No início de setembro do mesmo ano, Mathias foi julgado e condenado a quatro anos de prisão por entrada ilegal, violação das leis de voo e “hooliganismo malicioso”. Graças a grandes esforços diplomáticos e um ato de boa vontade soviético, após 14 meses Rust foi deportado para a Alemanha.

Reprodução / Aventuras na História — UOL

A viagem de Mathias, que tinha apenas 50 horas de voo, até Moscou começou no dia 13 de maio de 1987, na Alemanha Ocidental. Com o Cessna 172 do clube de voo que frequentava, Rust passou pelas Ilhas Shetland, Ilhas Faroé, Islândia, Noruega e, por fim, pela Finlândia. Da cidade de Helsinque, Mathias informou ao controle aéreo que iria até Estocolmo, porém, em voo, desligou os aparelhos de comunicação e mudou sua rota, até que desapareceu dos radares finlandeses. Rust sabia que entrar em espaço aéreo soviético era um perigo para sua vida, mas acreditava estar fazendo o que era certo. Por duas vezes o Cessna 172 foi identificado pelo controle soviético como se fosse uma aeronave amiga: primeiro foi confundido com aviões em treinamento e depois com helicópteros em missão de busca. Ainda assim, em certo momento mísseis antiaéreos foram preparados, mas não houve a autorização para disparo. Em outro momento um caça-interceptor MiG-23 voou ao lado de Mathias para investigá-lo, mas o piloto considerou que o avião não apresentava perigo. Já sobre Moscou, uma das cidades mais bem protegidas contra ataques aéreos do mundo, Rust teve tempo de procurar a Praça Vermelha e um bom local para pousar. Após desistir da ideia de pousar dentro do Kremlin avistou uma ponte próxima à Praça, onde aterrissou.

Nome das localidades (em português) por onde Rust passou: Hamburgo, Uetersen, Ilhas Faroé, Keflavík, Bergen, Helsinque e Moscou. Foto de Wikimedia Commons

A motivação de Rust foi especulada e teorizada pelo público na época, sendo até mesmo veiculado que seu voo suicida tinha o objetivo de impressionar uma garota. Porém a motivação do jovem não era tão romântica, mesmo sendo bastante idealista. Tendo crescido em uma Alemanha dividida (do lado Ocidental) e durante a Guerra Fria, Mathias Rust, como muitos outros, preocupava-se com o possível conflito entre as superpotências, que tinha grandes chances de começar em território alemão, e o possível resultado desse conflito: uma catástrofe nuclear.

Foto de Wikimedia Commons

O jovem acreditava que Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos (EUA), estava cego e não via a possibilidade de negociação que Gorbachev representava como líder do Partido Comunista da URSS. Após a Conferência de Reiquiavique, de outubro de 1986, na qual os líderes das superpotências não conseguiram chegar a um acordo sobre a redução de seu poderio militar, o jovem alemão-ocidental desesperou-se. Porém, com fé no diálogo como solução para o conflito mundial, Rust decidiu agir por si mesmo: queria voar até o centro de Moscou e assim criar uma “ponte imaginária” entre os dois blocos antagonista da Guerra Fria.

Mathias, seu voo e sua motivação, apesar de idealistas, eram um claro reflexo daquele período histórico. Do lado soviético, Gorbachev estava buscando renovar os sistemas político e econômico de seu país, os quais considerava incapazes de resistir ao ambiente externo e interno da União Soviética. Para isso, além da perestroika e da glasnost internamente, Gorbachev, externamente, perseguia maior diálogo com os Estados Unidos, sendo que em seu “Novo Pensamento” a busca por paz era um objetivo central. Obviamente, nem todos os camaradas do Partido e das Forças Armadas Soviéticas concordavam com os objetivos do Secretário-Geral do Partido. Do lado americano, com a ascensão de Ronald Reagan ao poder, a década de 1980 começou reacendendo o confronto contra a União Soviética. O novo presidente americano notou um enfraquecimento do inimigo e acreditou que era possível acabar com a Guerra Fria, com os Estados Unidos como vencedores. Por isso ele aumentou os gastos militares, com o intuito de aumentar a capacidade americana em relação a soviética, e endossou um discurso de conflito entre o nós, a liberdade e o bem americanos; e o eles, a escravidão e o Império do Mal soviéticos. Porém, com o tempo, ficou mais claro que Reagan estava disposto a negociar com o “mal”, se isso levasse à vitória do “bem”.

O voo de Mathias Rust causou certa desmoralização das Forças Armadas Soviéticas, afinal, se elas não impediram a invasão de um simples avião monomotor ao coração da URSS, poderiam também não impedir um ataque americano. Essa desmoralização acabou sendo útil a Gorbachev, que utilizou o incidente para demitir figuras que se opunham às suas reformas e à sua busca por conciliação externa, como o Ministro da Defesa, Serguei Sokolov, o Chefe de Defesa Aérea, Alexander Koldunov, e outros oficiais, no que foi, provavelmente a maior virada nas Forças Armadas Soviéticas desde os expurgos de Josef Stalin.

Pouco mais de seis meses após o voo do jovem piloto amador, Gorbachev e Reagan assinaram um importante tratado de controle de armas nucleares, o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, ou INF (na sigla inglesa). Após quatro anos, em parte devido às reformas de Gorbachev, que o voo de Mathias Rust ajudou a concretizar, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas foi dissolvida e a Guerra Fria estava de fato acabada.

Foto de Bulletin of the Atomic Scientists

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