Dez anos da prisão do “Carniceiro dos Bálcãs”

Diplonite
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6 min readMar 8, 2024

Os crimes, a detenção, o julgamento e a memória de Ratko Mladić.

Por Tales de Leão (originalmente publicado em 26/05/2021)

No dia 26 de maio de 2011, há exatos dez anos, no vilarejo sérvio de Lazarevo, ao norte de Belgrado, foi capturado Ratko Mladić. Três unidades especiais sérvias foram até a casa em que estava Mladić, a qual pertencia a um parente seu, e prenderam-no após 16 anos de fuga. Com 69 anos, um braço paralizado devido a um derrame e sem disfarce algum, ele não resistiu à prisão, mesmo tendo consigo duas pistolas.

Foragido desde 1995, passou até o ano de 2000 com proteção do ex-presidente sérvio Slobodan Milošević, sendo visto em jogos de futebol, velórios, restaurantes e corridas de cavalo. Porém, com a queda do aliado, Ratko teve de começar a esconder-se pela Sérvia, ajudado por apoiadores. Sua prisão e o anúncio de extradição para ser julgado em Haia fizeram as autoridades sérvias serem elogiadas internacionalmente, já que Mladić era considerado o criminoso de guerra mais procurado da Europa. Para o governo sérvio, a prisão representou a abertura da possibilidade de entrar na União Europeia (UE) — o que não se concretizou até hoje — , mas para parte da população do país, que manifestou-se nas ruas, representou a traição de um herói nacional.

Ratko Mladić e Radovan Karadžić foram as duas principais lideranças da República Srpska. Os separatistas contavam com o apoio logístico e financeiro de Belgrado, através da figura do então presidente sérvio Slobodan Milošević. Foto de Picture Alliance/DPA

Mas quem foi Ratko Mladić? Por que ele era procurado? Em que tribunal de Haia ele foi julgado? E por que um criminoso de guerra pode ser considerado um herói nacional? Bem, cada uma dessas respostas é longa o suficiente para uma reportagem ou para um livro, mas é interessante, nessa data marcante, tentar apresentá-las de forma mais sucinta.

Foto de Mladić, em 1992, ano em que começou a Guerra da Bósnia. Foto de Srdjan Ilic/AP

Nascido em 1943, no sul da Bósnia, mas etnicamente sérvio, Ratko Mladić é filho de um militar que morreu durante a Segunda Guerra. Tendo crescido já na Iugoslávia, foi oficial do Exército Popular Iugoslavo e, quando começaram as turbulências que viriam a ser as Guerras dos Bálcãs, as mais sangrentas da Europa desde 1945, tornou-se general do Exército da República Srpska — Estado não-reconhecido criado por sérvios bósnios que consideravam a independência da Bósnia e Herzegovina da antiga Iugoslávia como inconstitucional; enquanto a Bósnia e Herzegovina foi prontamente reconhecida pela União Europeia como um Estado soberano, a República Srpska não foi reconhecida nem pelo governo bósnio nem pela UE, e manteve forte laço com o governo sérvio.

Mladić observa a cidade bósnia de Goražde, alvo de limpeza étnica em ação do Exército da República Srpska. Goražde foi sitiada durante os três anos da Guerra da Bósnia. Foto de Reuters via Al Jazeera

Buscando criar um Estado sérvio puro, durante os conflitos, Ratko intentava vingar-se dos muçulmanos — que, outrora, ocuparam a região na figura do Império Otomano — chamados pejorativamente de “turcos”. Mladić foi responsável por dois grandes, e terríveis, eventos. O cerco de três anos e meio à cidade de Sarajevo, capital Bósnia, durante o qual dezenas de mulheres e meninas foram estupradas e 10.000 pessoas morreram, incluindo 1.500 crianças, a partir de bombardeios, fogo de artilharia e ação de franco-atiradores. E o Massacre de Srebrenica — cidade sob proteção das Nações Unidas — que constituiu um genocídio planejado e comandado por Mladić, no qual cerca de 8.000 homens bosníacos (bósnios muçulmanos), dos 12 aos 80 anos, foram assassinados em cinco dias pelas forças do Exército da República Srpska.

“O número total de vítimas que não é final”. Foto de Wikimedia Commons

Nesse contexto, em 25 de julho de 1995, o ex-general sérvio, apelidado de “Carniceiro dos Bálcãs” ou “Açougueiro dos Bálcãs” devido suas ações sangrentas, foi indiciado por seus crimes de guerra no Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia (TPII), estabelecido em Haia, que julgava indivíduos responsáveis pelas violações do direito humanitário nos territórios iugoslavos entre 1991 e 1999. Divisor de águas no direito internacional, esse tribunal indiciou 161 indivíduos e sentenciou 90 durante sua existência (1993–2017) e, quando Mladić foi capturado e começou a ser julgado, já havia tido sob sua jurisdição, dois de seus superiores: Radovan Karadžić (líder da República Srpska, condenado, em 2016, a 40 anos de prisão) e Slobodan Milošević (ex-presidente da Iugoslávia e da Sérvia, que morreu, em 2006, durante seu julgamento, após ter sido preso em 2001).

Milošević (E) e Karadžić (D) reunidos para tratar do Acordo de Dayton. Foto de Xinhua/Reuters Photo

A captura de Ratko foi importante, afinal ele só poderia ser julgado quando estivesse sob jurisdição do TPII. Assim, em 16 de maio 2012 começou seu julgamento, que durou seis anos, até 2017, e que debruçou-se sobre onze crimes dos quais o ex-general foi acusado. Durante o julgamento, Mladić mostrou-se, por vezes, sarcástico, apluidindo os juízes, e negou as acusações de genocídio em Srebrenica, sendo que sua defesa argumentou que ele não estava na cidade durante o massacre e que não tinha comunicação com os soldados. Apesar das tentativas, Mladić foi responsabilizado pelas ações em Srebrenica e em Sarajevo, e mesmo tendo sido absolvido de uma acusação de genocídio relacionada a pequenas vilas, foi condenado pelos outros dez crimes dos quais foi acusado, incluindo genocídio, perseguição, extermínio, assassinato, deportação, terrorismo, ataques ilegais a civis e fazer reféns. Assim, em 22 de novembro de 2017, o “Carniceiro dos Bálcãs” foi condenado à prisão perpétua.

Atualmente, o caso de Ratko Mladić, sua prisão e julgamento, representam um símbolo de que a justiça, apesar de por vezes lenta, pode vir para aqueles que infringem os direitos humanitários. O TPII, essencial para o entendimento de conceitos como o genocídio e o estupro enquanto crime de guerra e responsável por uma intensiva pesquisa e trabalho de memória da história, mostrou que a impunidade não é a regra para aqueles que lideram atrocidades. Porém, ainda assim, nem o julgamento e nem o caso de Mladić em si são livres de críticas, posto que, da acusação até o veredito do julgamento, decorreram mais de vinte anos. Também não se pode esquecer que, apesar de ser confirmadamente, pelo direito internacional, um criminoso de guerra responsável por medidas genocidas, o “Carniceiro” é lembrado por partes da sociedade sérvia como um herói nacional, que lutou pelos interesses sérvios durante as Guerras dos Bálcãs, sendo que ainda há ruas com seu nome.

O rosto de Mladić em Gacko, cidade etnicamente sérvia na Bósnia e Herzegovina. Foto via Deutsche Welle

Mladić foi preso, julgado, condenado e cumpre sua pena. Cabe agora, ainda, à sociedade como um todo, não deixar que seus atos tornem-se esquecidos e fazer com que outros que cometam as mesmas atrocidades sejam também levados a julgamento, pois a paz é apenas possível com justiça.

Familiares de vítimas da guerra comemoram a condenação de Mladić. Foto de Dado Ruvic/Reuters via Exame

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