Eleições na Argentina

A acirrada disputa frente a abstenção histórica

Diplonite
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4 min readMar 30, 2024

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Por Bianca Ferreira Andrade (publicado originalmente em 1 de novembro de 2023)

No último domingo (22/10), as eleições presidenciais na Argentina resultaram em um disputado primeiro turno no qual o candidato governista e peronista, Sergio Massa, obteve 36,68% dos votos, enquanto o economista outsider ultraliberal, Javier Milei, obteve 29,98% do total. Em um não tão distante terceiro lugar ficou Patricia Bullrich, com 23,83% do total. Se por um lado Massa carrega consigo o fardo de ser Ministro da Economia em uma Argentina que beira a hiperinflação, por outro, Milei busca conquistar votos utilizando um discurso neoliberal radical propondo o fim do Banco Central e a dolarização total do país. As campanhas dos candidatos sensibilizam e canalizam traumas sociais diferentes, refletindo o esgotamento da população, bem como as contradições existentes na sociedade argentina.

A instabilidade política e econômica, infelizmente, não é novidade para os hermanos. Este ano o país comemora 40 anos ininterruptos de democracia, porém enfrentou, ao longo do século XX, seis golpes de Estado. Em contraposição, no início daquele mesmo século, a Argentina se arrogava o título de Europa das Américas devido à sua riqueza. E então foi se desenvolvendo o europeísmo na política, de cunho étnico e cultural, difundindo o sentimento de uma suposta superioridade argentina. E é esse sentimento que Milei acessa, prometendo o retorno a um passado próspero. A mensagem disruptiva que almeja o fim do status quo do presente para alcançar esse passado ideal é uma formulação da extrema direita da qual o candidato se vale e cujo aspecto de rebeldia seduz as camadas mais jovens da população.

Enquanto exalta os anos de ouro, Milei minimiza os anos de chumbo. No primeiro debate presidencial televisivo, o ultraliberal se filiou ao discurso de sua candidata à vice, Victoria Villarruel, ao desconsiderar cerca de 20 mil vítimas da ditadura afirmando que foram 8 753 desaparecidos — número considerado como subestimado por relatórios oficiais, tal qual o Registro Unificado de Vítimas do Terrorismo de Estado. Na mesma medida que ganha espaço com setores militares, o candidato aposta nesse discurso em uma Argentina cuja transição para a democracia não foi pactuada, mas na qual houve uma ruptura com o Estado de Segurança Nacional a partir de uma justiça punitiva que ecoou na sociedade. As violências cometidas durante a ditadura foram centrais no debate político de 1983, quando cerca de 40 mil pessoas marcharam na Praça de Maio em oposição à anistia dos militares. O discurso do candidato Milei, portanto, abala consensos construídos socialmente e reclama novo espaço político aos atores ligados às Forças Armadas.

Massa, por sua vez, teme um passado mais recente: o peronista não mede esforços para se desvincular dos fracassos da gestão do atual presidente, Alberto Fernández, e sua vice, Cristina Kirchner. Essa missão, contudo, não é nada simples, uma vez que Massa é ministro da Economia e é justamente nesse setor que se encontram os grandes desafios da administração pública. O país acumula déficits fiscais há dez anos e, com a perda de credibilidade, a venda de títulos públicos no mercado financeiro deixou de ser uma resolução eficaz para a crise — a ponto do governo optar pela impressão de pesos para tentar conter a inflação, desvalorizando a moeda.

Massa, do Unión por la Patria, apresenta-se como um peronista mais moderado cujas propostas não tiveram espaço no governo de Fernández. É justamente nessa moderação que aposta para preservar o status quo argentino. Ao propor união, ele se afasta das mensagens disruptivas de seu rival e busca atrair grupos que se espantam com as polêmicas propostas de Milei e desconfiam do ultraliberal. Inclusive, o temor de um futuro catastrófico é uma das ferramentas principais que Massa usa para enfrentar seu opositor, espalhando mensagens sobre o provável aumento de tarifas em estações de metrô, por exemplo.

A campanha de Milei é mais forte nas redes sociais, o que demonstra como o candidato se favorece dessa nova forma de fazer política, aproximando-se do eleitorado mais jovem. Como o próprio nome da coalizão de Milei sugere, “La Libertad Avanza”, o candidato eleva a noção de liberdade até a última potência. Sua campanha, portanto, é bastante distante da de seu opositor. O candidato se coloca como representante do anarcocapitalismo e, em decorrência de sua posição, apresenta-se veementemente contra espaços de negociação internacional, como o Mercosul e os BRICS.
Embora a campanha esteja bastante polarizada — o que implica a tendência do surgimento de falas mais extremistas — o descontentamento de Milei com tais instâncias internacionais pode incorrer em um diálogo mais truncado com o governo brasileiro. Afinal, o governo Lula teve um papel salutar no convite dos BRICS para ingresso da Argentina. Ainda assim, o Brasil é um dos principais parceiros econômicos da Argentina, de modo que a negociação com o país vizinho é inevitável, independentemente de quem seja eleito.

A terceira colocada, Patrícia Bullrich, também se opunha à entrada da Argentina nos BRICS. A ex-candidata já deu seu apoio a Milei, o que, contudo, não indica que toda a ala de sua coalizão, Juntos por el Cambio, seja favorável a essa posição. Assim, muitos se declararam neutros nesse segundo turno. Com a maior abstenção de votos da história do país desde a redemocratização (74% de comparecimento nas urnas), o grande embate dos dois candidatos se dará em relação aos indecisos. O desfecho dessa disputada corrida presidencial ocorrerá dia 19 de novembro.

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