Moedas digitais

A insurgência das criptomoedas e o futuro do dinheiro

Diplonite
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9 min readMar 30, 2024

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Por Isabella Jordão (originalmente publicado em 8 de setembro de 2021)

As moedas digitais revelam a nova tendência financeira e uma possível mudança de paradigma na era da informação. As criptomoedas — em especial, o Bitcoin — estiveram presentes nos noticiários do mundo todo na última década e iniciativas como o euro digital e o yuan digital têm ganhado cada vez mais visibilidade. A fim de apresentar uma breve introdução sobre o tema, o presente texto está dividido em dois blocos. O primeiro tem por objetivo identificar cada um dos elementos e uma breve conceitualização. O segundo trata das principais questões referentes à transformação do sistema financeiro a nível global.

Parte I — Mapeando os elementos

O que são as criptomoedas

Foto de Nuthawut

As criptomoedas surgiram no contexto da crise financeira de 2008. Um dos argumentos centrais que levaram à sua criação é a necessidade de minimizar a intermediação em operações financeiras.

Esses ativos são apenas um subconjunto do universo dos criptoativos. Como o próprio nome indica, os criptoativos são ativos digitais, virtuais, protegidos por criptografia. Então, as criptomoedas são moedas digitais protegidas por criptografia.

Isso significa que a movimentação de dinheiro, como pagamentos e transferências, ocorre por via eletrônica. Essa movimentação ocorre de forma descentralizada, isto é, sem a necessidade de intermediação de determinadas instituições financeiras. Dessa forma, tanto indivíduos como empresas podem movimentar dinheiro sem a intermediação de bancos. Tal propósito serviria inclusive para pagamentos e transferências internacionais.

Em síntese, as criptomoedas são caracterizadas por serem moedas virtuais e descentralizadas, protegidas por criptografia. Elas conferem anonimato e custos de transação praticamente nulos. Essas moedas são criadas e negociadas em uma rede própria, conhecida como blockchain. Nela, as movimentações são agrupadas e registradas em blocos, com informações conectadas entre si.

O caso mais emblemático de criptomoeda é o Bitcoin (BTC), a primeira moeda digital do mundo. Porém, hoje outras criptomoedas estão ganhando destaque também. Entre elas, estão Ethereum (ETH) e Cardano (ADA).

O que é o Blockchain

Foto de Shutterstock/Iaremenko Sergii

O blockchain é um sistema que permite o envio e o recebimento de determinadas informações pela internet. O conceito pode ser traduzido como “corrente de blocos” ou “uma sequência de cadeia de blocos”, pois são blocos de dados com informações conectadas entre si.

Ainda, pode ser compreendido como um tipo de livro contábil ou livro-razão, no qual são registradas todas as transações e o rastreamento de um determinado ativo. Esse ativo pode ser tanto tangível (carro, casa ou terreno) quanto intangível (direitos autorais, marcas ou patentes).

A rede blockchain torna-se protagonista na era da informação, pois há uma necessidade cada vez maior de processar grandes volumes de informações de forma rápida e segura; é possível acompanhar diversas atividades, como pagamentos e produção de bens e serviços.

Há diversos tipos de redes blockchain. Elas podem ser autorizadas, privadas, públicas ou desenvolvidas por consórcio. Em termos de tecnologia, essas redes são sustentadas por dois principais elementos: banco de dados P2P descentralizado e criptografia. O termo P2P (do inglês peer-to-peer) pode ser entendido em português como “ponto a ponto”, pois trata-se de uma rede de computadores espalhados pelo mundo (pontos), na qual são compartilhadas todas as informações. Por sua vez, a criptografia garante a segurança e a confiabilidade dessas informações; estas são codificadas e só quem tem a chave de acesso consegue acessá-las.

Criação do Bitcoin

Foto de Getty Images

O Bitcoin (BTC) foi criado pelo pseudônimo Satoshi Nakamoto em 2008, com o objetivo de substituir o dinheiro físico e minimizar a necessidade de intermediação em operações financeiras. Apesar das especulações, ainda não se sabe a verdadeira identidade de Nakamoto.

O BTC pode ser usado para a compra de bens e serviços, desde que o estabelecimento aceite a criptomoeda como meio de pagamento. Em junho de 2021, El Salvador aprovou seu uso como moeda oficial do país, junto ao dólar, sob o argumento de integrar as pessoas que ainda estão à margem do sistema financeiro, uma vez que as operações poderão ser feitas sem intermediários.

Apesar de não ter um valor inerente, seu preço varia todos os dias. Essa variação é determinada conforme a lei da oferta e demanda, assim como qualquer outra moeda; quanto mais pessoas querem o BTC, mais caro ele fica.

No dia 31 de agosto de 2021, um BTC equivalia a quase R$ 245 mil (duzentos e quarenta e cinco mil reais) e mais de US$ 47 mil (quarenta e sete mil dólares. Em 2009, quando começou a entrar em operação, um BTC valia menos de um centavo de dólar (o valor era em torno de US$ 0,001).

Euro Digital

Foto de François Lenoir/Reuters

Em julho de 2021, o projeto de euro digital foi lançado e sugere uma alternativa às criptomoedas. De acordo com o Banco Central Europeu (BCE), esse projeto foi lançado a fim de acompanhar o boom dos pagamentos virtuais impulsionados no contexto pandêmico.

Christine Lagarde, atual presidente do BCE, afirmou que a iniciativa tem por objetivo assegurar que tanto cidadãos como empresas continuem a ter acesso à forma mais segura de moeda — as moedas emitidas por bancos centrais.

O euro digital continuaria a ser um euro, tal como as notas de euro, mas em formato digital. Trata-se de uma opção adicional e facilitadora de pagamentos. Em outras palavras, seria um instrumento fácil, rápido e seguro de pagamentos. Essa iniciativa de digitalização da moeda poderá contribuir para a acessibilidade e a inclusão na área do euro. Atualmente, o BCE e os bancos centrais nacionais europeus estão avaliando seus riscos e benefícios.

Por fim, vale ressaltar que esse projeto não implica que o euro digital será emitido; é uma preparação para essa possibilidade.

Yuan Digital

Foto de RHJPhtotoandilustration/Shutterstock

O yuan digital (e-CNY) é um CBDC que está sendo testado desde 2020. O termo CBDC (do inglês Central Bank Digital Currencies) se refere à moeda digital emitida pelo Banco Central da China.

Até agora, a moeda foi utilizada para movimentar pelo menos US$ 5 bilhões (cinco bilhões de dólares), inclusive para pagamentos internacionais. Song Ke, vice-diretora do Instituto Internacional de Estudos Monetários da Universidade Renmin, afirmou que a internacionalização do yuan é necessária para o desenvolvimento econômico do país. Conforme o artigo do People’s Daily, um dos principais objetivos do governo chinês é construir uma rede internacional de compensação e liquidação de pagamentos usando o yuan digital. Com a iniciativa, a China também poderá monitorar e controlar as movimentações na moeda, bem como se posicionar no sistema financeiro internacional sob a hegemonia do dólar.

Parte II — Principais questões

Foto de David McBee/Pexels

Uma das principais questões em torno das criptomoedas é a possibilidade de que esses ativos possam desempenhar as funções da moeda de forma independente do Estado. Isso é ou será possível? Se sim, quais serão as consequências disso?

Há alguns pontos a serem analisados antes de desenvolver a problemática em questão.

Primeiro, a moeda pode ser definida com um bem que combina três funções básicas. Unidade de conta, isto é, serve como base para indicar o preço de outros bens. Reserva de valor, entendido como a preservação do poder de compra ao longo do tempo. Meio de pagamento, ou seja, é aceito como pagamento por outros bens e serviços.

Segundo, a principal diferença entre as moedas fiduciárias e as criptomoedas. As moedas fiduciárias estão atreladas aos governos e seus respectivos bancos centrais, enquanto as criptomoedas são descentralizadas.

A moeda fiduciária sem lastro representou o fim do padrão dólar-ouro em 1971 e o colapso do sistema de Bretton Woods. Nessa ocasião, a moeda deixa de estar lastreada em ouro ou outro bem com valor intrínseco; estes bens são finitos e representavam uma âncora ao desenvolvimento econômico, pois limitavam a realização de mais trocas na economia. Seu valor advém da confiança imposta por lei e em seu emissor (governos e bancos centrais).

Moedas como o real (R$) e o dólar (US$) podem ser emitidas conforme a política monetária estabelecida no Brasil e nos Estados Unidos, respectivamente. Em contraste, o BTC é uma moeda limitada: foi estabelecida a emissão de apenas 21 milhões de bitcoins. Até 2019, estima-se que já haviam sido emitidas cerca de 18 milhões de moedas.

Um dos principais objetivos dos bancos centrais é manter a estabilidade do sistema financeiro, inclusive ante o contexto especulativo das moedas digitais, através da regulamentação. A emissão de novos BTCs é regulada por um algoritmo, e não por um comitê de política monetária.

Nessa altura da leitura, há um ponto que pode parecer contraditório. As criptomoedas surgiram em um contexto de fragilidade do sistema financeiro, buscando se tornar uma alternativa sem intermediários. Então, por que as criptomoedas representam um potencial gerador de instabilidades no sistema financeiro?

A primeira criptomoeda surgiu ante o contexto da crise financeira de 2008, a partir do estouro da “bolha imobiliária norte-americana”, a fim de operar de forma independente de instituições governamentais ou bancos.

A crise do subprime está associada às perdas relacionadas ao financiamento de imóveis (hipotecas) nos Estados Unidos. Essa crise teve início em julho de 2007, a partir da queda do índice Dow Jones. Em reação às perdas, os investidores se apressaram para desfazer suas posições em créditos hipotecários. Com isso, importantes bancos e fundos de investimentos responsáveis pela concessão de crédito sofreram um rombo patrimonial significativo; o caso mais emblemático foi a quebra do Lehman Brothers.

A ruptura do fluxo de crédito gerou um “efeito dominó”: contaminou outros segmentos do mercado e deflagrou uma crise a nível global sem precedentes. Assim, esse momento de fragilidade do sistema financeiro, bem como a forma que contaminou o lado real da economia, serviu de argumento central para a criação das criptomoedas.

Por um lado, devido ao seu caráter especulativo e volátil, as criptomoedas ainda são vistas com desconfiança por muitos agentes econômicos e são pouco aceitas em escala global; trata-se de algo novo, independente e sem uma regulamentação. Por outro lado, nota-se que grandes empresas e bancos estão investindo em criptomoedas, como JP Morgan, IBM e PayPal.

O avanço das criptomoedas não deve ser menosprezado. É verdade que esses ativos estão inseridos em contexto especulativo hoje. Porém, podem indicar uma nova tendência financeira global; ainda, são capazes de promover grandes mudanças nos âmbitos econômico, geopolítico e social.

Por fim, de que forma o yuan digital poderá colocar em xeque o poder hegemônico do dólar?

A China considera que alguns episódios recentes de tensões com os Estados Unidos, como as sanções impostas à empresa de tecnologia Huawei, indicam que o dólar poderá ser usado para impor sanções ao país. Diante dessa possibilidade, o governo chinês tem apostado em iniciativas de internacionalização do yuan digital.

Dentre os objetivos da internacionalização da moeda, destaca-se a tentativa de reduzir a dependência do dólar e tornar mais acessível os pagamentos transfronteiriços; nota-se que a iniciativa deve atrair principalmente os mercados emergentes. Portanto, trata-se sobretudo de uma questão geopolítica.

O sistema que rompeu com Bretton Woods há 50 anos inaugurou o atual sistema monetário internacional (SMI); este consolidou a hegemonia do dólar e conferiu aos Estados Unidos um grande poder econômico e político a nível global. Isto só foi possível devido à confiança nas instituições estadunidenses. Contudo, suas fragilidades e as novas tendências impostas pela era digital indicam uma possibilidade de ruptura do status quo — para bem ou para mal — e devem ser acompanhadas. Dessa forma, a insurgência das moedas digitais indicam um ponto de inflexão nos âmbitos geopolítico, econômico e social — e, portanto, na própria História.

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