O Ártico: última fronteira

Disputas geopolíticas exacerbam potencial da região como principal centro de projeção de poder marítimo do século XXI.

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5 min readMar 29, 2024

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Por Christiane Scheuermann (Publicado originalmente em 16 de agosto de 2021)

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) — órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) responsável por acompanhar as mudanças climáticas e fornecer relatórios nesse sentido para formuladores de políticas públicas — publicou, na última segunda-feira (09), o seu relatório mais completo até o momento, “Climate Change 2021: The Physical Science Basis”. No documento, elaborado a partir de mais de 14 mil artigos científicos, estão presentes algumas previsões alarmantes para o futuro da terra, e, portanto, da espécie humana. Em especial, cabe destacar que este é o primeiro documento a apontar indiscutivelmente a causalidade entre a ação humana e a mudança do clima, além de uma previsão impactante: o Ártico estará sem gelo até 2050. No entanto, não é a primeira vez que a região do Círculo Polar Ártico chama a atenção internacional: desde o início do século XXI, há disputas geopolíticas envolvendo o território mais setentrional do planeta.

Região do Ártico descongela. Reprodução da Internet

Em 2 de agosto de 2007, uma notícia alertou os países sobre uma das últimas fronteiras humanas. O evento consistiu na fixação de uma bandeira russa no fundo do polo norte, cerca de 4.261 metros abaixo do nível do mar. Na visão de Moscou, o evento reforça a “liderança russa na conquista do Ártico”. Entretanto, para a comunidade internacional, o ato não significa efetivamente um domínio russo sobre a região. Assim como as falas do ex-presidente Donald Trump, que expressavam o interesse em comprar a Groelândia da Dinamarca, a ação foi vista como uma provocação, cuja consequência foi acirrar a disputa pela conquista dos mares do Oceano Ártico.

Canadá, Noruega, Dinamarca, Estados Unidos e Rússia são os países que, informalmente, declaram soberania sobre o Ártico. Há algumas décadas, a região permanecia distante dos principais temas considerados como de interesse nacional, essencialmente porque seu potencial econômico era nulo ou desconhecido. Devido à grossa camada de gelo presente, a extração de combustíveis fósseis, pesca e comércio marítimo eram inviáveis. Todavia, a maior demanda por energia no mercado globalizado, a diminuição da camada de gelo superficial como consequência do aquecimento global e a falta de legislação internacional sobre a região tornou-a demasiadamente atrativa. Segundo estudos realizados pelo US Geological Survey, a região pode abrigar 30% do gás natural ainda inexplorado do planeta e 13% do petróleo.

Porém, a extração de recursos naturais está em segundo plano entre os interesses nacionais dos países no Ártico. O principal interesse é a possibilidade de projetar poder pelo controle das rotas comerciais que tendem a se estabelecer no futuro. Hoje, os países ainda dependem de barcos conhecidos como ice-breakers (quebradores de gelo, em tradução livre)para realizar a travessia pelos mares congelados. Porém, em 2040, a previsão é que essa tecnologia se tornará desnecessária durante alguns meses do ano, aumentando o potencial econômico da região. A rota pelo Oceano Ártico pode se tornar a mais rentável para realizar a travessia entre Eurásia e América do Norte.

Rotas de comércio do Ártico de 2015 a 2060. Mapa de The Times

Em suma, a disputa pelo Ártico expõe a fragilidade do regime internacional sobre territórios marítimos. Tendo em vista o conceito do estrategista naval Alfred Mahan, de que “o poder de uma nação está na sua marinha e a habilidade que essa possui de projetar seu poder em outros”, é compreensível a baixa adesão — e manipulação — das grandes potências marítimas das normativas previstas na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM). Não é de interesse das grandes potências navais limitar a sua capacidade de expansão mais benéfica, por meio da demarcação dos mares. No caso do Ártico, os países buscam reconhecimento de suas reivindicações territoriais por meio de submissões à ONU, declarando que sua crosta continental avança além dos 370 km incluídos em suas respectivas Zonas Econômicas Exclusivas.

Entretanto, o reconhecimento legal é apenas uma maneira de tentar legitimar a ação dos países perante seus pares, visto que a maioria dos países citados já está, de diferentes maneiras, apropriando-se de “um pedaço do Ártico”. A Rússia é, sem dúvidas, o país mais adiantado no processo de anexação. Novamente citando um conceito de Mahan, existem três opções pelas quais o domínio marítimo pode se estabelecer: instrumentos de guerra, comércio e estabelecimento de colônias; a Rússia está investindo em versões reformuladas dessas estratégias, apropriadas para o século XXI. O número de bases na região (instrumentos de guerra), a parceria estabelecida com companhias de transporte marítimo (comércio) e os assentamentos de populações na região (estabelecimento de colônias), com um forte investimento na criação de uma identidade russa-ártica, são bons exemplos.

Assim, a bandeira russa no fundo no Polo Norte não determina, por si só, que o país possui o domínio do Oceano Ártico. Todavia, a tendência é de que, na inexistência da expressão do direito internacional na questão, a conquista do Ártico se torne o novo meio de projeção de poder dos Estados. Para tal, os países empregarão as mais diversas estratégias de poder marítimo, que podem ser observadas no presente e serão mais agressivas ao longo dos anos, enquanto o gelo derrete e a região se torna mais atrativa.

Bandeira russa no fundo do Oceano Ártico. Foto de AP

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