O gasoduto Nord Stream 2 e a governança da União Europeia

O gasoduto ligará a Rússia à Alemanha pelo Atlântico Norte e promete duplicar o fornecimento de gás natural ao bloco europeu.

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5 min readMar 8, 2024

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Por Victor Domingues Ventura Pires (originalmente publicado em 7 de junho de 2021)

INTRODUÇÃO

Uma das principais problemáticas energéticas da União Europeia (UE) gira no entorno do fornecimento de gás natural, já que a produção interna do bloco não é suficiente para garantir a continuidade do consumo interno. Com isso, conforme Andreas Becker da Deutsche Welle, os países europeus dependem, enormemente, do fornecimento de gás vindo da Rússia, que em 2020 representava 40% do mercado comum europeu de gás e dois terços da produção russa. Em paralelo, o projeto Nord Stream 2, gasoduto submarino que vai ligar a Alemanha à Rússia pelo Mar do Norte, atendendo ao desejo russo de não passar pelos territórios da Ucrânia e da Polônia, promete duplicar o envio de gás rumo ao centro da Europa.

Tal realidade impõe dinâmicas únicas para a União, já que, devido ao grande número de Estados membros que compartilha com a Organização do Tratado do Atlântico Norte, instituição que possui uma política diametralmente oposta à manutenção da influência russa no leste europeu, dualidades internas entre as preferências da UE e de seus membros nos termos das relações com a Rússia não são raras.

UMA RELAÇÃO TRIPLA: A UNIÃO EUROPEIA, BERLIM E MOSCOU

Angela Merkel, ainda no destaque de Becker, sempre fora uma defensora do projeto Nord Stream 2, já que a Alemanha enfrenta risco de desabastecimento diante do declínio da produção em outros países europeus, bem como de dar suporte à transição energética do país, deixando o carvão e a energia nuclear de lado em nome de fontes renováveis e mais eficientes. Do outro lado, a Rússia tem interesse em ter maior acesso ao mercado alemão e centro-europeu sem a necessidade de passar seu gás pela Ucrânia e pela Polônia, dois países que têm mantido relações pouco amistosas com Moscou nos últimos anos, como relatam Anna Shiryaevskaya e Dina Khrennikova do Washington Post. Contudo, entre a Alemanha e a Rússia há a própria União Europeia, que também não nutre grandes afetos com Moscou.

O Nord Stream. Reprodução via Gazprom

Em resolução aprovada no dia 21 de janeiro de 2021, conforme o jornal Deutsche Welle, por 581 votos a favor a 50 contrários, além de 44 abstenções, o Parlamento Europeu exigiu que a construção do Nord Stream 2 fosse interrompida devido à prisão na Rússia do ativista político e crítico ao Kremlin, Alexei Navalny. Mas mais do que isso, o Parlamento também colocou a necessidade de uma revisão crítica a toda e qualquer cooperação com a Rússia, a necessidade de sanções às autoridades russas e a libertação de Navalny. Esse posicionamento pôde ser feito graças aos poderes de deliberação do Parlamento, concedidos pelo Tratado de Lisboa, que permitem à instituição emitir pareceres não vinculativos e não legislativos sobre questões internas e externas à UE. Todavia, não foi suficiente para mudar a postura de Angela Merkel.

Outro entrave que advém da União Europeia se dá em termos legais, já que, a partir do art. 3º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), onde se coloca que é de competência exclusiva da União a regulação das regras de concorrência, no sentido de evitar monopólios, uma mesma empresa não pode fornecer o gás e controlar o gasoduto que o transporta, e tal se aplica ao Nord Stream 2, já que a Gazprom, gigante russa dos ramos de gás e petróleo, é acionista majoritário da Nord Stream 2 AG, o consórcio que administra a construção do gasoduto e sua futura manutenção, e única fornecedora do gás que passará pelos dutos. Tal problemática torna-se ainda mais urgente conforme o gasoduto aproxima-se da costa alemã. No início de abril de 2021, o consórcio responsável pela construção informou que o gasoduto já estava 95% completo.

Assim, à exceção dos tribunais em relação à possibilidade de um monopólio, a União Europeia não possui capacidade de proibir a construção, sendo tal ação totalmente dependente da Alemanha. Isso se deve ao tipo de relacionamento que a União tem com seus membros e quais os poderes que a UE possui em termos de política externa. Desde sua fundação, o projeto integracionista europeu sempre teve limites quanto a sua atuação e deliberações. Como define o art. 4º do TFUE, as questões de energia são de competência compartilhada entre a União e seus membros, estabelecendo que cada um exercerá sua competência conforme o outro não a exercer. Ou seja, enquanto a União não fornecer uma alternativa aos planos da Alemanha, o país poderá continuar com seu projeto sem maiores entraves.

Ao mesmo passo, em termos de política externa, como apresenta Costa (2020), a natureza da atuação externa da UE é multinível, portanto, dependente tanto das esferas europeias quanto das nacionais. Logo, mesmo a União possuindo seus diversos organismos, como o próprio Parlamento Europeu, além do Serviço Europeu para a Ação Externa, com capacidades diretas ou indiretas de influenciar a política externa europeia, parte da tomada de decisão ainda depende dos Estados membros. Assim, questões como o relacionamento com a Rússia e em qual nível ela se dá, acabam por ser ponto de discordância entre a União e os Estados membros, em especial a Alemanha.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a questão ainda em aberto, é difícil predizer sua resolução, apesar de o mais provável ser a finalização do Nord Stream 2 acompanhada de alguma mudança na estrutura interna da Nord Stream 2 AG, de forma a não entrar em conflito com a legislação interna da União. Feito isso, haverá pouco mais do que pressão discursiva e política por parte da União Europeia sobre a Alemanha. Esse evento é importante para demonstrar que a UE está longe de ser um poder soberano na Europa, e que os Estados membros ainda possuem capacidades significativas de impor suas vontades frente ao processo integrativo. Ademais, tal desenrolar demonstra o pleno funcionamento da União ao lado de um governo interno, onde ambos versam de forma divergente sobre o mesmo tema.

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