O início do fim de um país

Há 10 anos, a Primavera Árabe chegou ao Iêmen. Hoje, o país convive com a pior crise humanitária do mundo e uma Guerra Civil que dura 76 meses.

Diplonite
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4 min readMar 2, 2024

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Por Rafael Firme (publicado originalmente em 27 de janeiro de 2021)

Um país perto de seu final. Claro, o Iêmen não terminará, mas tem sua soberania ameaçada a cada dia, a cada tiro, a cada explosão. Como a situação chegou a tal ponto? Hoje, o Iêmen, além de sofrer com uma dura guerra civil, tornou-se teatro operacional de conflitos entre as potências da região e tem em seu território a pior crise humanitária do mundo. Aos iemenitas restou o medo.

O Iêmen é um país muito jovem, estabelecido da forma atual apenas em 1990, após a unificação da República Democrática Popular do Iêmen (Iêmen do Sul) e da República Árabe do Iêmen (Iêmen do Norte). Iêmen do Sul e Iêmen do Norte têm origens similares. Ambos contaram com a permissão britânica para formar seus territórios, visto que o Sul pertencia à Federação da Arábia do Sul — um protetorado britânico — e o Norte, por sua vez, pertencia ao Reino do Iêmen — uma monarquia alinhada aos britânicos, formada após o fim do Império Otomano. Durante a Guerra Fria, os dois países protagonizaram duas guerras civis antes da unificação. O Sul, independente em 1967, contava com o apoio do Bloco Socialista; o Norte, independente em 1962, contava com o apoio dos países membros da OTAN.

O então presidente do Iêmen do Norte, Ali Abdullah Saleh (D) celebrando a unificação do Iêmen com o então secretário-geral do Partido Socialista do Iêmen, Ali Salem al Beidh (E). A imagem foi feita em 1989 e um ano depois, Saleh tornou-se presidente do Iêmen, tendo Beidh como seu vice-presidente. Foto de Thomas Hartwell — The LIFE Images Collection/Getty Images

Depois de um tempo de certa estabilidade, surgiu, em 2011, a Primavera Árabe, um movimento popular que tinha como objetivo gerar uma mudança política nos países do Grande Oriente Médio. Todavia, passados dez anos do levante, apenas a Tunísia promoveu mudanças significativas; o país de maior população árabe, o Egito, apenas substituiu ditaduras; na Líbia, o caos foi instaurado após ações externas; Síria e Iraque observaram o crescimento do Estado Islâmico. Por outro lado, a Casa Hashemita da Jordânia e as outras monarquias da Península Arábica não tiveram grandes problemas, apenas precisando fazer pequenos reparos no aparato político nacional de seus países. Mas o Iêmen, única república da Península Arábica, diferente de seus vizinhos, entrou em colapso em 2011.

A situação política em cada país após a Primavera Árabe. Mapa de janeiro de 2016. Reprodução de The Economist

O levante, que ficou conhecido como a Revolução Iemenita, durou um ano e um mês, entre 27 de janeiro de 2011 e 27 de fevereiro de 2012, e resultou na queda do governo de Ali Abdullah Saleh, que esteve no poder por 22 anos; além disso, cresceu a presença da Al-Qaeda no Iêmen. Mas o mais importante foi a ascensão dos Houthis, um grupo político formado após a unificação do país, nos anos 90.

Antes dos 22 anos como liderança do Iêmen unificado, Saleh foi presidente do Iêmen do Norte entre 1978 e 1990, isto é, ele era um nome de peso na política nacional iemenita. Em 2017, Saleh foi assassinado pelos Houthis, sob alegação de que o ex-presidente “almejava um acordo” com a Arábia Saudita, o que seria inaceitável para os Houthis, visto que o movimento é politicamente alinhado ao Irã.

A data que marca o início da atual guerra civil corresponde a 19 de março de 2015, quando o vice-presidente de Saleh e seu sucessor na presidência do país, Abdrabbuh Mansur Hadi, alegou que tropas leais ao ex-presidente tentavam um golpe, atacando o aeroporto de Áden, segunda cidade mais importante do país. Dez dias depois, os rebeldes Houthis — que até o momento contavam com o apoio de Saleh — tomaram a cidade de Saná, capital iemenita. Após o golpe, orquestrado por Abdul-Malik al-Houthi — líder do movimento — foi Mohammed Ali al-Houthi, primo de Abdul-Malik, quem assumiu a cadeira deixada por Hadi, que fugiu do Iêmen e buscou refúgio na Arábia Saudita, país no qual reside até hoje. Na mesma noite em que Hadi deixou o país, iniciaram os bombardeios em Saná, que ocorrem até hoje.

O presidente iemenita exilado, Abdrabbuh Mansur Hadi (E), em reunião com o Príncipe Herdeiro saudita, Mohammed bin Salman (D). Registro de 2018, em Jeddah, na Arábia Saudita. Foto de Bandar Algaloud/Agência Anadolu

O resultado do conflito no Iêmen é um sinal de alerta para a ONU, que, como em Srebrenica e Ruanda, adota posição excessivamente protocolar e pouco faz para dar fim a um conflito aparentemente interminável. A atual guerra civil iemenita já custou 200,000 vidas e gerou 3 milhões de refugiados. Hoje, os Houthis controlam o norte do país, incluindo a capital Saná; em outras frentes estão três vertentes políticas: o “Gabinete do Iêmen”, liderado desde o exílio por Abdrabbuh Mansur Hadi, que controla o sul do país e é apoiado pela coalizão saudita; o “Conselho de Transição do Sul”, que controla — entre outros locais — a cidade de Áden e é apoiado pelos Emirados Árabes Unidos; as organizações terroristas, como Al-Qaeda e Estado Islâmico, que controlam poucos territórios e disputam hegemonia entre si.

O controle político em cada localidade iemenita. Mapa de outubro de 2019. Mapa de Evan Centanni e Djordje Djukic via Political Geography Now

O ápice da desgraça iemenita chegou em 2020, com a pandemia do novo coronavírus. Até o momento, os inconfiáveis dados oficiais apresentam aproximadamente 2,500 casos da doença no país e 660 mortes. O Iêmen é o pior país da Ásia e o 11º do mundo quando o tema é o Índice de Desenvolvimento Humano. Aos iemenitas resta a esperança, pois a realidade é cruel.

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