Os 55 anos do Agosto Vermelho

O caminho de sangue da Revolução Cultural na China.

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11 min readMar 30, 2024

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Por João Victor Silva Rodrigues (Publicado originalmente em 27 de agosto de 2021)

Neste mês de agosto, completam-se 55 anos do trágico evento chamado de “Agosto Vermelho”, uma série de massacres ocorridos na China no início da Revolução Cultural em 1966. Os dados oficiais da época estimam que em torno de 1.500 pessoas foram mortas em Pequim entre os meses de agosto e setembro, mas pesquisadores acreditam que os dados reais podem ser ainda mais expressivos. Ao contrário do que se pode imaginar, estes homicídios não foram causados (apenas) por armas de fogo; foram, de fato, majoritariamente em consequência da tortura perpetrada pela Guarda Vermelha — movimento estudantil mobilizado pelo então presidente do Partido Comunista Chinês, Mao Zedong (Mao Tsé-Tung se utilizada a transliteração Wade-Giles). As motivações para o ocorrido podem ser compreendidas a partir de seus precedentes históricos e do contexto social no qual o país se encontrava.

Membros da Guarda Vermelha se reúnem na Praça da Paz Celestial para um discurso de Mao Zedong em setembro de 1966. Foto de Wikimedia Commons

Após a Revolução Comunista na China, em 1949, Mao Zedong ascendeu ao poder como primeiro presidente do Partido Comunista, tendo liderado o Exército Vermelho durante a revolução. O início de seu governo foi caracterizado, entre outros aspectos, pelo combate a qualquer tipo de influência contrarrevolucionária e capitalista no país, como pode ser observado em luz do apoio chinês na Guerra da Coreia: tendo em vista a proximidade do país à China continental, não seria bem-quisto ter a presença estadunidense (de aspirações ideológicas diversas daquelas da China comunista) em seus arredores. Ademais, de maneira mais particular, o governo chinês instaurou as campanhas dos Três-Anti (1951) e dos Cinco-Anti (1952). A primeira delas visava expurgar a corrupção, o desperdício e a burocracia das instâncias políticas. Isso é relevante principalmente devido à escassez de membros do Partido Comunista e à presença de membros do Guomindang (partido nacionalista chinês de Taiwan, parte derrotada durante a Guerra Civil de 1949) no governo, além da própria resistência aos princípios estabelecidos pelos líderes da República Popular. E a segunda, a Campanha dos Cinco-Anti, buscava findar toda influência capitalista no país, punindo o suborno, o furto de propriedade estatal, a evasão fiscal, a fraude em contratos governamentais e o furto de inteligência econômica estatal. As medidas tinham por objetivo controlar as fábricas e retirar o máximo de capital dos capitalistas.

Em termos econômicos, as primeiras décadas sob o comando de Mao foram de intensa industrialização e urbanização. Para tal, foi realizado o Primeiro Plano dos Cinco Anos, durando de 1953 a 1957, que seria a primeira etapa de uma gradual transição para o socialismo, período este identificado como “capitalismo de Estado”. Esse plano foi considerado bem-sucedido ao alavancar o desenvolvimento econômico chinês e, logo, discussões acerca de um novo plano dos cinco anos se iniciaram. No entanto, essas conversas foram suplantadas pela medida conhecida como Grande Salto Adiante. Apesar do sucesso do projeto anterior, algumas pendências foram identificadas, em especial o fato da industrialização não estar acompanhando o ritmo de crescimento populacional e a urbanização, o que gerou um corpo de desempregados na economia. Além disso, temores de uma crise de abastecimento por conta de uma produção agrícola insuficiente levaram os líderes do partido a organizarem um plano econômico mais agressivo. O Grande Salto Adiante de 1958, em suma, buscava mobilizar a massa de desempregados para o setor rural de modo a produzir insumos para as indústrias, estabelecer metas ambiciosas para a produção no período, métodos de produção ambíguos e, fatalmente, desconsiderar avaliações técnicas em prol de um foco em resultados maiores e melhores. Os resultados desse projeto econômico, no entanto, mostraram-se longe daqueles desejados pelo governo. A crise de abastecimento alimentício, em decorrência da escassez de trabalhadores nas colheitas e do excesso de trabalho para a produção industrial, mergulhou a China em uma grande onda de fome, na qual estima-se que entre 15 e 30 milhões de pessoas morreram no processo.

1958: Produção de aço na área rural da China durante a noite. Foto de Wikimedia Commons

Não é absurdo dizer que o fracasso do Grande Salto Adiante não foi bem aceito pela população. O governo, nos anos que seguiram, foi capaz de restabelecer o ritmo de crescimento do país. Em 1964, foi feita uma campanha de educação socialista, com o objetivo de excluir práticas derivadas do capitalismo, especialmente no campo, onde costumes considerados supérfluos pelo Partido Comunista Chinês permaneciam relevantes. Parte desse processo, por exemplo, foi a criação do Livro Vermelho com as citações de Mao Zedong. Pode-se concluir que a perda de legitimidade ocasionada pelo fracasso do Grande Salto Adiante conduziu ao anseio pela sua recuperação, e consequentemente levou o governo de Mao a enfrentar seus opositores de forma mais assertiva, de modo a restabelecer sua imagem como líder absoluto da China. Para isso, a base para um ataque ao establishment percebido pelo líder começou a ser montada. Um de seus pilares, o Exército de Libertação Popular, é revitalizado durante a década de 1960 sob o comando de Lin Biao, e atua, não apenas como força armada, mas também como formadora das autoridades civis do governo. Outra parte fundamental para os planos do presidente foi a mobilização de intelectuais radicais no país, que teriam a função de servir como doutrinadores e mobilizadores da massa. Este grupo era composto por membros da sociedade chinesa urbana que se consideravam desavantajados. Com efeito, eles se resumiam a estudantes e trabalhadores urbanos, em sua maioria jovens, que, face a membros da sociedade com melhores condições de vida, cresceram inconformados com seu próprio predicamento. Por fim, a mobilização popular foi fundamental para os anos que se seguiram.

Reunida a base necessária, a Revolução Cultural na China se inicia no ano de 1966. O processo, promovido pelas lideranças do Partido Comunista, visou expurgar o país dos problemas que, pela percepção do presidente, poderiam conduzir o país ao retorno do capitalismo. Para tal, utilizou-se do conflito de classes, sua autopromoção e doutrinação que, por conseguinte, levaram a um culto de personalidade de Mao, além de articulações políticas e mobilizações sociais. Temendo o revisionismo dentro das instâncias governamentais, o líder chinês criou mecanismos para efetuar uma renovação no Partido, reestruturando-o com a intenção de ceder o poder ao proletariado por meio da luta de classes que se sucederia neste processo de transição desejado pelo presidente chinês.

Em um primeiro momento engloba-se o choque entre Mao e o establishment que deveria ser combatido dentro do movimento, iniciado no final de 1965 e continuado em 1966. Nesse período, o líder consolidou as bases políticas supracitadas, com intuito de retirar do poder representantes e oficiais das variadas instâncias governamentais que estariam indo contra a revolução proletária, e novamente imergindo o país no capitalismo. Um evento marcante para o período foram os Cinquenta Dias entre junho e agosto de 1966, onde estudantes foram mobilizados para hostilizar autoridades universitárias, as quais supostamente seriam opositores das medidas maoístas. Ainda no mês de agosto, houve um ataque mais arrojado aos membros influentes do Partido Comunista, com a participação da incipiente Guarda Vermelha. Formado principalmente pela juventude urbana inexperiente em meados de 1966, esse movimento visava combater os “Quatro Velhos” que restaram do capitalismo e do imperialismo: as velhas ideias, a velha cultura, os velhos costumes e os velhos hábitos. Ao serem intimados por Mao a “aprenderem a revolução fazendo a revolução” ¹, os jovens recrutados para servir à causa de Mao Zedong mostraram-se violentos em seu curso de ação, perpetrando inicialmente invasões domiciliares até o ponto de interrogarem e punirem membros do governo.

Dazibao, posters de grandes caracteres eram usados como forma de protesto e propaganda por estudantes durante a Revolução Cultural, como é possível observar nesta foto do campus da Universidade de Pequim em 1967. Foto de Wikimedia Commons

É dentro desse contexto que o Agosto Vermelho se insere. Sendo a Guarda Vermelha um movimento jovem, os primeiros momentos de sua operação ocorreram dentro de escolas e universidades. No começo, foram propagadas ofensas verbais; por instância, em maio de 1966, foram espalhados posters pela Universidade de Pequim denunciando as autoridades do corpo discente como membros de uma gangue negra, ao mesmo tempo que se expressava a necessidade de “firmemente, plenamente, claramente e totalmente eliminar quaisquer bois-fantasmas e cobras-demônios” ². Os alunos começaram, em seguida, a utilizar as mesmas palavras dos posters para atacar seus professores dentro das universidades, denunciando-os como contrarrevolucionários, antipartido, antissocialistas e antimaoístas. Gradualmente, as ofensas verbais transitaram para ataques físicos. Em junho, há relatos de uma agressão ocorrida com o vice-coordenador do departamento de matemática da Universidade de Pequim Xiang Jingjie, na qual os alunos colocaram uma lata de lixo em sua cabeça e derramaram tinta sobre seu corpo. As agressões, em adição, não estavam restritas às universidades.

Nas escolas de ensino fundamental, há, por exemplo, o relato de Bian Zhongyun, a vice-diretora da escola de ensino fundamental para garotas ligada à Universidade de Professores de Pequim. Em uma carta redigida às autoridades do governo sobre uma reunião que participara com seus alunos, Bian descreveu a agressão que sofrera: “eu fui forçada a vestir um chapéu, abaixar minha cabeça (uma hora chegando a um ângulo de noventa graus) e ajoelhar no chão. Eu fui espancada e chutada. Minhas mãos estavam amarradas atrás das costas. Eles me bateram com um rifle de madeira que foi utilizado para treinamento de milícias. Minha boca estava cheia de sujeira. Eles cuspiam na minha cara” ³. Bian não recebeu retorno algum do governo quanto à sua carta.

Song Binbin amarra uma faixa vermelha para Mao Zedong na Praça da Paz Celestial em 1966. Foto de Wikimedia Commons

Os meses que seguiram continuaram o padrão de aumento das animosidades de alunos para com professores e figuras de autoridade dentro das instituições de ensino. Em 5 de agosto de 1966, Bian Zhongyun foi espancada até a morte por alunos que compunham a Guarda Vermelha liderados por Song Binbin. Wang Jinyao, marido de Zhongyun, descreveu que o corpo de sua esposa estava completamente preto por conta do espancamento. Membros do gabinete de Zhou Enlai pediram ao viúvo da diretora para que ele tivesse “a atitude correta quanto às massas revolucionárias” 4, mas nada mais foi feito.

O terror vermelho da Revolução Cultural estava apenas começando naquele momento. Em 18 de agosto, milhões de jovens se reuniram para ouvir Mao Zedong na Praça da Paz Celestial, animados pelo apoio que vinham recebendo de seu líder. Fato aparente disto é o encontro de Song Binbin e o presidente, no qual ela coloca uma faixa vermelha no braço do líder. Deste dia até o final do mês, as agressões se intensificaram exponencialmente. A ordem presidencial, do dia 22 do mesmo mês, para que os membros do movimento estudantil não fossem detidos por seus atos apenas legitimou as atrocidades realizadas. Em 25 de agosto, um proprietário de imóveis de nome Li ameaçou membros da Guarda Vermelha que o mantinham refém e foi morto. Esse incidente estimulou outros grupos dentro do movimento a conduzir uma chacina brutal durante sete dias no distrito de Chongwen. Entre os dias 27 de agosto e 1 de setembro, outro massacre ocorreu, nesse caso no distrito de Daxing: estima-se que 325 pessoas, pertencentes aos “Quatro Velhos” ou filhos dessas pessoas, foram mortas. A mais nova das vítimas tinha apenas 38 dias de vida. Dentro desse período de uma semana que compreendeu o Massacre de Daxing, 1.335 pessoas foram mortas, segundo um documento interno não-publicado. Os números, porém, não são totalmente confiáveis, uma vez que, por exemplo, provavelmente não levam em consideração as pessoas espancadas até a morte nos trens que saiam de Pequim. Além disso, muitos dos sobreviventes desses ataques apresentaram sequelas severas, enquanto outros foram expulsos de suas casas e de sua cidade ou tiveram seus pertences roubados e suas reputações arruinadas.

Ao perceber que a situação estava saindo do controle, o Partido Comunista interveio para impedir que o massacre continuasse, o que teve resultados dúbios considerando a ocorrência de massacres nos anos seguintes pela mesma juventude da Guarda. A Revolução Cultural, nos anos que seguiram, mostrou suas falhas. O próprio movimento da Guarda Vermelha estava repleto de fragmentações: apesar do objetivo de combater resquícios da cultura imperialista ocidental, não havia consenso sobre quem essas pessoas seriam. Membros dessa juventude — filhos de políticos ou militares — tendiam a retirar o foco das críticas do partido e direcionar a outros atores, elementos e alvos considerados burgueses: intelectuais, estudiosos, proprietários de terra, industriais, além de hábitos como cabelos longos e vestimentas apertadas. Membros oriundos de famílias burguesas, por conta de sua origem indesejada, buscavam atacar o establishment político do governo. No final de tudo, este cisma contribuiu para a falta de coordenação da Guarda Vermelha. Quando este grupo entrou em rota de colisão com o Exército de Liberação Popular, em 1968, Mao decidiu encerrar o movimento, declarando seu fracasso em atingir seus objetivos.

A Revolução Cultural parece uma realidade completamente distante da potência econômica que é a atual República Popular da China. De fato, parte das razões pelas quais o país está em rota para se tornar a maior economia do mundo seria rechaçada pelo próprio movimento das décadas de 1960 e 1970. O anseio por estabilidade após um período conturbado e de desgaste das instituições no país fez com que os sucessores de Mao Zedong, apesar da tarefa árdua, tivessem poucos opositores às medidas que foram implementadas.

Chen Xiaolu se retratou pelos seus atos durante a Revolução Cultural. Foto de Beijing Living Will Promotion Association

Desde o período, o governo chinês nunca apresentou uma resposta clara quanto à sua visão dos eventos do Agosto Vermelho. Embora a Revolução tenha admitidamente falhado segundo o partido, discussões públicas acerca dos problemas dela ou da culpabilidade do Partido não são permitidas. O pedido de desculpas de Chen Xiaolu, um líder da Guarda Vermelha e filho de um líder revolucionário, é uma das poucas declarações acerca do ocorrido, apesar de não representar o posicionamento do Partido Comunista. O governo, no entanto, impediu que os maiores veículos midiáticos estatais cobrissem sua entrevista. Ademais, Song Binbin se retratou e se curvou diante da estátua da diretora Bian Zhongyun, mas não admitiu ter participado de seu assassinato. Com esta ambiguidade, alguns encaram os pedidos de desculpa de maneira otimista, como um sinal positivo dos tempos que seguirão; outros acreditam não ser o suficiente para apagar a mancha do ocorrido. Uma coisa é certa: o Agosto Vermelho não deve ser esquecido.

Notas

  1. FAIRBANK e GOLDMAN, 2006, p. 392.
  2. WANG, 2001, p. 13–14.
  3. WANG, 2001, p. 16.
  4. KUHN, 2014.

Referências adicionais

FAIRBANK, John King; GOLDMAN, Merle. The Politics of China. Massachusetts: Harvard University Press, 1998.

HARDING, Kenneth. The Chinese state in crisis. In: MACFARQUHAR, Roderick; FAIRBANK, John King. The People’s Republic, Part 2: Revolutions within the Chinese Revolution 1966–1982. Nova Iorque: Cambridge Press University, 1991, p. 107–200.

KUHN, Anthony. Chinese Red Guards Apologize, Reopening A Dark Chapter.

MISHRA, Pankaj. What Are the Cultural Revolution’s Lessons for Our Current Moment?.

WANG, Youqin. Student Attacks Against Teachers: The Revolution of 1966. Issues & Studies. Chicago, v. 37, no. 2, mar/abr 2001.

YU, Luowen. 文革时期北京大兴县大屠杀调查 (Investigação do massacre no condado de Daxing, Pequim, durante a Revolução Cultural).

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