Reprodução: International Herald tribune

Do Direito Constitucional de Reunião

Está acontecendo…? Finalmente?

Raphael Rios Chaia
Direito e Justiça
Published in
6 min readJun 15, 2013

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Por anos nos indignamos com tanta coisa errada passando diante de nossos olhos todos os dias. Corrupção, desmandos, desvios, toda a sorte de atos de improbidade que frustraram sonhos de democracia obtidos ao custo de sangue e lágrimas de nossos pais, avós e entes queridos, que um dia, decidiram se levantar contra o regime ditatorial instalado no Brasil no passado, culminando com o nascimento da Constituição Cidadã, em 1988. Com ela, toda uma sorte de Direitos e Garantias Fundamentais, cláusulas pétreas que protegem os cidadãos independentemente de credo, etnia, sexo e classe social. Com ela, ainda, um novo paradigma: o de que as mazelas não mudariam.

Eu mesmo não conseguia entender como raios a população tinha, em tão pouco tempo, perdido a capacidade de se indignar, de se reunir para questionar esses pontos; afinal, quando foi que a corrupção, em poucos anos, conseguira ter deixado de ser algo velado, discreto, e tornara-se algo flagrante, escancarado, sem vergonha?

Um dia, isso mudou, e pegou todo mundo de surpresa. E por tão pouco…

Tudo começou por causa de 20 centavos. Porém, como todo floco de neve que cai sobre a encosta da montanha, a questão começou a tomar proporções cada vez maiores, e a agregar valores, críticas, interesses, pessoas, e logo já era uma enorme bola de neve, irrefreável, porém, com sua direção bem definida.

Tenho visto pela televisão jovens estudantes se reunindo, como não via desde os tempos dos caras pintadas, ou em meus livros de história sobre o período do regime militar. Tenho visto confrontos, tenho visto violência, tenho visto medo, terror, depredação. O primeiro impacto vem com a notícia mastigada pela mídia: tratam-se de arruaceiros, vândalos, você pode pensar. Mas na era da informação, no mundo sempre online, não existe verdade que se oculte, ou mentira que se mantenha. Videos começaram a aparecer no YouTube; fotos começaram a circular pelo Tumblr; tweets começaram a se multiplicar com status de Facebook em escala geométrica. Já não acompanhava mais o avanço das manifestações pela televisão, mas pelas redes sociais. E o que eu vi foi violência desmedida, com reações desproporcionais por parte do poder público.

Vi administradores públicos tratando esses jovens como bandidos. “Bandido”, porém, é inimigo do Estado, que viola a lei. Reunir-se pacificamente não é crime, e precisamos deixar isso claro antes de generalizarmos no julgamento de todos os jovens envolvidos nos protestos dos últimos dias. Há sim os que violaram a lei, e esses sim deverão responder, mas protestar não é crime. Não é formação de quadrilha. É direito. Direito esse previsto no art. 5.º da Constituição Federal, a espinha dorsal de todos os direitos e garantias que nos protegem.

Afinal, do que trata o direito de reunião?

O chamado direito constitucional de reunião está previsto, como dissemos, no art. 5.º da Constituição, mais exatamente em seu inciso XVI; segundo tal disposição, toda pessoa pode convocar encontros em locais abertos ao público, desde que o encontro seja pacífico, lícito, sem armas, e não colida com outra reunião anteriormente convocada para o mesmo lugar. O direito é exercido independentemente de autorização (de quem quer que seja), contudo, exige-se apenas que seja avisada a autoridade competente. Há ainda uma lei que regulamenta a reunião, o obscuro Decreto-Lei n.º 406/74, um diploma legal pré-constitucional.

Esse direito fundamental diz respeito não só às reuniões estáticas, em específico local aberto ao público, como também às manifestações em percurso móvel, como passeatas, comícios, e manifestos como os registrados nos últimos dias.

A própria Constituição limita o direito: se houver armas, se houver quebra do caráter pacífico, se houver violações à lei vigente do país, o uso da força e da tropa de choque está autorizado, e aquele(s) que extrapolar(em) seu direito, deverá(ão) sofrer com os rigores da lei, simples assim. É a velha dicotomia debatida n’A República, de Platão: não existe liberdade sem responsabilidade. A lei protege seus cidadãos somente se eles estiverem dentro da lei.

Os direitos de reunião e de associação permitem aos membros de uma sociedade a dinâmica de organização e articulação entre seus membros, por meio de uma participação ativa de seus indivíduos. É por essas ações que nasce o intercâmbio de idéias, a defesa de interesses meta-individuais, bem como ações conjuntas destinadas à implementação de propostas e reivindicações, representando de fato uma ação coletiva e social.

Reunidos, cada cidadão passa a compartilhar suas ideias, propostas e anseios com maior intensidade, e aqui, vale tudo, desde a redução da passagem de ônibus - o argumento inicial de todo o estopim que se acendeu nos últimos dias -, até questionar gastos públicos, morosidade do Judiciário, reforma agrária, projetos de lei que vão contra o interesse público. São esses movimentos que transformam os sujeitos individuais, e os faz transcenderem para entes coletivos, que somam as diferentes vozes, potencialidades e ações de inúmeras pessoas. Por isso emergem com mais força, fôlego e vida, transcendendo a fragilidade de indivíduos isolados.

Segundo a própria exposição de motivos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, “os direitos de reunião e de associação, a existência de uma sociedade civil e a vigência de um regime democrático são pressupostos fundamentais ao exercício pleno da cidadania, sem o qual os demais direitos fundamentais não podem ser verdadeiramente implementados”. Reunir-se e reclamar seus direitos não pode ser confundido com vandalismo, com baderna; é exercício de cidadania. É externalizar o desejo do povo, a manifestação verdadeira da democracia representativa que repousa sobre o manto da nação.

Os agentes públicos devem sempre pautar suas ações e atos administrativos pelo interesse público. Isso não é questão moral apenas: é legal. É o que estabelece o art. 2.º da Lei 9.784/99. É o que a lei determina, ao dizer que “a Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”. Fazer sua voz ser ouvida pelo poder público não deveria ser motivo de luta. Deveria ser padrão de excelência buscado pelo nosso representante, pela pessoa que nós escolhemos ocupar o cargo de administrador dos bens e serviços públicos, ou seja, nossos bens e serviços, pagos com os nossos impostos.

O que está faltando então?

Uma das primeiras coisas que aprendi no mestrado em Desenvolvimento Local, é que diálogo é indispensável. Não se promove desenvolvimento de cima pra baixo, ponto, isso é impossível. Todo o desenvolvimento nasce da descoberta das potencialidades e necessidades de uma sociedade, por isso, o diálogo é fundamental. Ao fechar as portas para quaisquer negociações, os administradores públicos cometeram um pecado mortal, pois viraram suas costas para aqueles que um dia depositaram seu voto (literalmente) de confiança em seu favor, e nada dói mais que a sensação de traição. Maquiavel bem dizia isso, uma verdade que parece que muitos governantes mundo afora insistem em esquecer ou ignorar. Seja amado e temido, se não puder ser os dois, prefira ser temido, mas jamais seja odiado. Jamais tenha condutas rapaces. Jamais aja com crueldade desmedida ou desnecessária. Nenhum Príncipe governa sem o povo. E o povo parece ter finalmente despertado de um longo sono…

Há aqueles que desvirtuam o movimento social, politizando o fato? Claro que há. Sempre haverá, assim como sempre haverá aqueles que irão ignorar as regras do jogo e causar danos ao patrimônio, levar armas, atacar com garrafas e rojões. Nada pode justificar a violência, de nenhum dos lados, e a esses, deve ser sim aplicada a lei. Que respondam, oras. Nada pode justificar os danos ao patrimônio do próprio povo. O que não pode haver é generalização. Não pode haver desvio do caminho nobre da luta por um direito, senão isso se torna uso arbitrário das próprias razões, e nessas horas, não importa o quão altas estejam as vozes a gritar: as ações de terror calam todas elas, uma a uma, impedindo que, mesmo as mais sinceras, sejam ouvidas no final.

Por anos nos indignamos com tanta coisa errada passando diante de nossos olhos todos os dias. Na primeira quinzena de junho de 2013, finalmente, saímos do sofá, do Facebook, e encontramos nossa veia revolucionária das redes sociais. O povo tomou as ruas mais uma vez. A nós, só resta a esperança de que esse momento não se perca, não se traduza em apenas uma manobra política, e que possa ser finalmente a tomada coletiva de consciência que há tanto tempo o Brasil necessita para evoluir.

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Raphael Rios Chaia
Direito e Justiça

Advogado e professor universitário, especialista em Direito Digital e Ambiental, Mestre e Doutor em Desenvolvimento Local. https://bento.me/raphaelchaia