A primeira fome

RIDÍCULA
Discórdia
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9 min readSep 29, 2021
arte de Monika Forsberg https://www.instagram.com/monika_forsberg

O cheiro de alho nunca sai das minhas mãos. Mas ninguém vai perceber aqui, são poucos os que sabem distinguir o cheiro, fora do palácio. Faz tanto tempo que as pessoas já não sabem o que é comida. Alho. Um cheiro tão característico e tão raro, tão meu, a ponto de Baju chamar de “cheiro da mamãe”, sem nunca ter sabido de onde vem. Ir às reuniões da escola sempre me deixa apreensiva. Como se fosse eu quem está em apuros com o diretor, e não Baju. Esse menino. Toda hora se mete em problemas, não por maldade ou desrespeito. É por pura e simples curiosidade. Uma vez foi pego xeretando na sala dos professores. Não estava tentando roubar provas nem nada. Em vez disso, passou o tempo ali ordenando os livros por cor. Meu menino doce, cheio de manias, meu filho.

A sala do diretor continua igual, ele me pede pra sentar. Baju não está por ali, como seria o normal, não costumam poupá-lo da vergonha de me ver ouvir suas peripécias e patifarias. Isso só faz tudo parecer mais grave, e um calor começa a subir pela minha garganta. O diretor é um homem jovem, com entradas no cabelo, e seu rosto parece mais preocupado do que severo.

– Dona Halina, eu achei que o assunto ia se resolver sozinho, mas seu filho é muito teimoso. Hoje é sexta feira. Desde terça que seu filho se recusa a comer o Limento.

Isso me pega de surpresa. Ele nunca foi difícil pra comer. Também começo a repassar na cabeça as últimas refeições. De repente me dou conta do Limento desfeito, espalhado pelas bordas da caixa. Um truque que eu mesma fazia na idade dele, na época que se comia comida de verdade, quando minha mãe fazia angu, polenta ou alguma outra coisa massuda. Como eu odiava! O que eu não daria agora pra comer um pouco de Angu com galinha, se eu soubesse não teria deixado um grumo amarelo sequer.

– Eu vou falar com ele. Limento é sagrado.

– Se ele não comer na segunda-feira que vem, ele vai ser suspenso. Não é um exemplo que queremos dar para as outras crianças.

Mais uma vez me envergonho, como se a bronca fosse para mim. E não era? Não era eu a responsável pela criação desse pequeno arruaceiro? Baju está me esperando na saída, e ao contrário de mim, parece tranquilo e satisfeito. O examino com cuidado. Não parece fraco nem desanimado. Pegamos o Flutuante Coletivo para casa. O Flutuante é um lugar excelente para censurar uma criança. Público o suficiente para multiplicar qualquer sensação de vexame (e Baju tem muito poucas, é preciso fazê-las valer ), mas também uma bagunça que impede os demais de realmente prestarem atenção. O ruído dos ímãs abaixo é constante, quase desaparece, tornando o lugar mais silencioso do que nossa casa, com as paredes de fibra universal.

– Quer dizer que você não está comendo o Limento. A ponto de eu ir pra sala do diretor. Que está acontecendo?

– Você teve aula de história, mãe?

– É claro que eu tive. Mas nada de desviar o assunto.

– A professora falou que antes do Limento existia uma coisa. Uma coisa que as pessoas sentiam porque não tinha comida pra todo mundo. — e virou pra mim como se tivesse revelando um segredo inimaginável — chamava fome.

– É verdade. Mas você não precisa se preocupar com isso. Foi por isso que inventaram o Limento. O aproveitamento máximo da comida, distribuído igualmente entre todos. Sem extravagância. Sem desperdício. É por isso que você nunca ouviu falar em fome.

– Então, mãe.

– Então, o quê?

– Eu queria sentir fome.

– Pra quê? Fome é sofrido, você pode ficar fraco, perder peso… se ficar muito tempo sem se Limentar, pode perder até o cabelo, desmaiar.

– Mas eu queria… talvez assim me desse vontade de comer.

É ruim quando um filho pega a gente assim de jeito. O coração ficou pequenininho, do tamanho de um coração de galinha. Queria continuar a bronca, convencer o menino, mas a verdade é que dou certa razão para ele. Eu, com meu cheiro de alho nas mãos, que ele ama sem saber o que é. Culpa.

Eu que digo pra ele que trabalho como arrumadeira no palácio, e não minto de todo, é o registro que está na minha carteira, o que eu faço realmente apenas uma dúzia de pessoas sabe. Os que cuidam da horta, os que cuidam dos animais e os que comem. Sou uma das duas cozinheiras do palácio, na cozinha secreta, na ala “fechada”. E quando cozinho, sou feliz, porque naquele momento, e apenas naquele, me é permitido provar de um caldo, mastigar um talo de cebolinha, sentir o cheiro dos molhos. Quando sobra algo do almoço ou do jantar, os poucos funcionários da cozinha correm para raspar o fundo das gamelas com sua barra de Limento e colorir de sabor aquela massa, tão bendita quanto insossa. Quantas outras cozinhas “fechadas” como a minha devem existir no país? No mundo? Suspeito que sejam muitas, algumas vezes a imperatriz volta de viagem e entra na cozinha como se esta fosse um beco escuro onde ela pudesse ser esfaqueada a qualquer momento. É verdade que costumo ter uma faca na mão, mas ela está reservada para legumes, desossar carnes e picar salsinhas. Ela espia para os lados antes de tirar de uma sacola algum ingrediente raro, um maço de raízes, um molho de cheiro doce, um pó de cor diferente. Ela seria uma boa contrabandista em outras circunstâncias. Depois, sou eu quem tenho que penar pra descobrir como se usa aquilo, já não existem receitas no Grande Diretório. É preciso experimentar, ou, o que faço normalmente, inventar com base em algo similar que eu já conheça. É uma raiz? Vai pro forno ou pro óleo fervente. É um grão, pronto, vai ser cozido.

Chegamos em casa e ele vai para o quarto, e mergulha em uma revistinha. Bebe água e não há nada que eu diga que o convença a colocar o Limento na boca. Nessas horas, minha mãe recorria às criancinhas com fome na rua, funcionava a cada vez. Eu não tenho a quem recorrer. Você não está sentindo a barriga doer? Um cansaço? Você com certeza já está com fome, argumento. Ele admite a fome, mas não a vontade de comer. Puxo a fita que abre a caixa do Limento, faço pressão com um dedo para que a ponta da barra salte fora da embalagem e dou uma mordida generosa, de tubarão. Tudo na frente de Baju, para quem sabe inspirar o menino, fazer seu buchinho roncar. Já fazem 3 dias, afinal. Para ser mais convincente, tento algo que não faço a tempos: sentir o gosto do Limento. É arenoso, mas não totalmente seco. Um pouco amargo, e com a saliva, tudo incha e preenche a boca quase que imediatamente. A coisa mais próxima é um feijão sem tempero que cozinhou demais. Fecho os olhos e até faço um “mm”, como nas antigas propagandas de refrigerante, mas não surte efeito. Deixo mais de uma caixa de Limento na mesa de cabeceira, caso ele mude de ideia.

É o dia seguinte. Passo a manhã em artimanhas diversas. Pico o Limento em formatos variados. Faço bichinhos. Perco o pouco orgulho que me resta e suplico, aplico a carta do Faça-porque-a-mamãe-está-pedindo, mas o menino herdou de mim a teimosia, e em certa medida isso é culpa minha. Sábado para mim não é dia de folga e preciso sair, deixando o menino com a vizinha. Aviso a ela sobre a última crise que Baju inventou. Cruzes, que ele não passe mal na casa dela, que tenha vergonha de recusar o Limento do meio-dia na frente dela, é tudo que consigo pensar, enquanto o Flutuante Coletivo corta a cidade.

Aos sábados a comida é mais farta, esperam as melhores receitas, os melhores ingredientes. Os serventes às vezes comentam quando há pessoas de fora para o banquete. Capricho mais nos pratos, que aquela seja uma refeição que eles se lembrem em casa, por muito tempo. Hoje deve vir muita gente, as bancadas estão cheias de ovos, de galinhas, de tomates, espigas de milho cabeludas, maços e maços de manjericão. Todos trabalham no ritmo dobrado, é muito mais do que estamos habituadas a fazer, Silfie e eu. Olhamos para os ingredientes da vez e decidimos o que vai com o que, o que pode ser feito nas 4 horas até o almoço. Os tomates estão lindos e vermelhos, parecem ter mais alma do que nós. Penso no meu filho que nunca teve uma razão para sentir vontade de comer. O último sabor que ele provou foi o leite do meu peito, e nem vale, ele não tem como lembrar. Tantas coisas naquele balcão, e Baju é tão pequeno. Separo um saco a mais sob a bancada, ao lado daquele onde descarto cascas e rebarbas. E para ali vou deslizando sorrateira quando Silfie se abaixa para abrir o forno, quando vira para lavar uma cebola na pia, quando está tão focada em não cortar os dedos que não enxerga mais nada.

Minhas mãos tremem. Nunca sequer cogitei fazer isso antes. Foi deixado muito claro quando fui contratada, que se algo vazasse, que se alguém ficasse sabendo o que era que eu fazia, era dali direto para a prisão. Seria muito difícil explicar para meus vizinhos aromas de coisas que não se vendiam há mais de vinte anos saindo pelo corredor. Decidi naquele dia que resistiria à tentação de surrupiar uma erva que fosse, mesmo que fossem as sobras do fim do dia, que ninguém sentiria falta. Mentir não é o meu forte.

Preparamos tortas e galinhas assadas, saladas frescas, suco de frutas, e um humilde pudim. Coisas simples mas que hoje passam por um grande banquete. Na minha sacola, um outro banquete espera. Dois tomates, uma cebola, dentes soltos de alho, ovos que coloquei delicadamente quanto Silfie saiu para ir ao banheiro, assim como um saco com um resto de farinha de milho, um cacho de uvas… Quando tudo estava pronto, ainda deixamos preparado o jantar, uma sopa rica com ossos e carne, batatas e cenouras. Eu sou a responsável por tirar o lixo no fim do dia, de forma que não foi nada estranho sair com a sacola de restos e menos estranho ainda que estivesse mais cheia que o normal, dada a quantidade de comida preparada.

Baju estranha a sacola, é a primeira coisa que nota quando bato na porta da vizinha. Era tudo que eu precisava, que alguém chamasse a atenção para meu contrabando que delata meu trabalho secreto. Desconverso, pergunto se ele almoçou, se jantou, assuntos que ele queria evitar ainda mais. Bom. Isso faz com que se apresse em dizer tchau para os amigos e a vizinha. Em casa, despejo o conteúdo da sacola sobre o balcão e saio pela casa procurando apetrechos que possam servir para cozinhar. Diferente do Palácio, nosso apartamento não tem cozinha, panelas ou coisa do tipo. Para Baju aquilo sobre a mesa parece uma invasão alienígena de formatos e cores. Cutuca o ovo. arranca folhas do manjericão. Quase dou um grito quando ele aperta demais meu precioso tomate.

– Não mexe aí! Me ajuda achar algum pote de metal.

– Pra quê, mãe?

– Hoje, nós vamos fazer comida.

– Comida?

– Comida. De antes do Limento. Veja. Cheira isso.

Com um canivete, descasco e corto um dente de alho. Primeiro ele cheira de longe, desconfiado. Acho que reconhece. Ele pega um pedacinho e olha pra mim e eu aceno que sim. Ele põe na boca. Mal comecei e já é uma vitória. Está comendo! O rosto dele se engruvinha como uma parka em dia de vento. Que força deve ter aquilo para quem nunca sentiu gosto de nada!

– É alho. Isso a gente usa pra temperar. Cozido o gosto fica mais suave.

Encontramos uma lata usada para guardar pilhas e fios elétricos e a esvaziamos. Outra com bonecos de brinquedo. Serão minhas panelas. O climatizador de ambiente, no máximo, deve esquentá-las o suficiente. Baju está hipnotizado. São muitas coisas para cortar, descascar, mexer, provar. Mas há assunto para preencher todo esse preparo, e pela primeira vez conto a ele o que eu faço de verdade, e que comidas eu gostava na infância e que coisas minha avó sabia preparar como ninguém. O angu que sai da minha panela improvisada é patético perto do dela. Não tenho caldo, nem ensopado de galinha, ainda por cima esqueci o sal. Mas os tomates não me decepcionaram, e o molho está espesso e cheiroso e sinto um orgulho incomum, diferente das refeições tão maiores e mais bem feitas que crio no palácio todos os dias.

– Mãe, acho que não estou passando bem.

Será que é tarde demais? Já é o quarto dia que esse menino não come. Corro até ele.

– O que você tá sentindo, meu filho?

– É minha boca. De repente encheu de saliva.

Dou risada e tranquilizo Baju. Meu menino. As tampas das latas viram nossos pratos e eu sirvo o angu, o molho de tomate, o ovo estrelado com a gema brilhante como o sol.

E pela primeira vez na vida, meu filho janta, empurrando a comida com as mãos para dentro de si, com urgência, deixando manchas ao redor da boca e na camiseta.

É tarde da noite e todo o ar ao redor nos alimenta, enquanto os vizinhos dormem, sem desconfiar de nada. Todas as janelas estão tapadas.

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RIDÍCULA
Discórdia

Nathalie Lourenço, publicitária e ridícula de nascença. Autora dos Livros Morri por Educação e Sabor Idêntico ao Natural. https://linktr.ee/natlourenco