casarão

Filipe Souza Leão
Discórdia
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8 min readMay 15, 2017

Restam apenas dois casarões na avenida Manoel Borba, um deles, o bege, é hoje o SAMU. No outro, o rosa ou salmão descascado com portão preto enferrujado está Lina que, no batente da porta de trás, sopra a brasa entre quatro tijolos e coloca a lata por cima. Hoje tem feijão. No jardim, brincam Rodolfo e Luiza. Ele, gordinho, bochechas rosadas, usa uma camisa branca, suspensório e bermuda preta. Brega como uma criança rica e saudável demais. Luiza, tá de vestido solto. Brincam no parquinho feito só para eles, Dona Branca tem medo de que sejam raptados se brincarem junto com as outras crianças na praça Chora Menino. Soube de vários casos de crianças desaparecidas. Sophie, a babá francesa está sentada no banco e lê um romance em francês enquanto vez ou outra levanta os olhos para vê-los brincando como dois idiotas. No fogareiro, Lina mexe o feijão, joga uns pedaços de charque gordurosa e grita por Cauã que está na frente da casa, no jardim de mato alto cheio de carrapicho. Dentro da carroça, ele procura o boneco sem cabeça que achou dia desses lá para os lados da Rua da Aurora. Com a carroça lotada de papelão e latas de alumínio, fica difícil achar. Neguinha, a cachorra, olha fixo para ele enquanto abana o rabo na espera do menino sair para brincar. Ô Cauãããããã, vem logo, peste! Tô indo, mainha. Ele corre e a cachorra corre atrás. Na sala, pula as madeiras da escada que levava ao primeiro andar. Lá em cima, Dona Branca passa talco nas axilas e nas virilhas. Toma três banhos por dia e depois de cada um deles, passa talco nas axilas e nas virilhas. É muito gorda e ainda não se acostumou ao calor recifense. O talco evita que fique assada, em carne viva. São Paulo era mais ameno, por isso não queria mudar. Para agradá-la, o marido, agora reitor da Faculdade de Direito do Recife, mandou construir o casarão de seu gosto. Após o ritual, Dona Branca desce as escadas e passa pela sala do piano, onde Amauri está deitado no colchão queimando de febre. Chegou assim na noite passada, como se fosse uma compensação pelo ótimo dia de reciclagem que teve. Carroça cheia, mas a febre lascando. Pobre não tem dois dias de alegria seguidos. Cauã, vá ver se seu pai precisa de alguma coisa. O menino corre. Não sabe andar, faz tudo correndo, acelerado como a cabeça da mãe. Se a mãe pede, quer na hora, correndo. Acostumou-se a correr. Painho, mainha tá perguntando se o senhor quer alguma coisa. Amauri responde com um grunhido, depois um gemido. O senhor tá melhor? Hum. Faz sinal com a mão pro menino ir embora, pra deixá-lo em paz. O menino corre de volta e a cachorra atrás. Ele só disse hum, rrummm e fez assim com a mão. A senhora viu meu boneco? Tinha que chamar de senhora e senhor. Um dia chamou Lina de tu e ficou três dias de beiço grosso, inchado. Nunca mais. Vi peste de boneco nenhum! Ele sai de cabeça baixa pro jardim de trás, corre da cachorra e a cachorra corre dele e rolam pelo chão. Enquanto isso, Rodolfo sobe cansado no escorregador e lá em cima olha como se estivesse vendo Cauã e Neguinha alegres, enquanto ele está ali, gordo e entediado com seus olhos verdes baços. Escorrega o corpo mole, firma os pés no chão, fica de pé com os braços balançando sem coragem, sem vida, e vai brincar no balanço. Luiza, que é menos idiota do que o irmão, brinca feliz com uma boneca de cabeça de porcelana e corpo de pano. Fala com a boneca, Ui mademoiselle e outras tantas palavras em francês. Pauline solta o livro e corrige a pronúncia da menina. Precisa falar com mais bico. Língua ridícula. Joana, a preta, cozinha o jantar e olha a francesa safada fazendo bico, cheia de chiqueza, agindo como madame, quando é empregada igual a ela. Dona Branca toma a fresca no jardim lateral e pensa que faz tempo que não fode com Afonso. Anda sem vontade, cansada, com calor todo o tempo e só de pensar em ter alguém por cima, fica sem ar. Pauline não fica. Aliás, o seu calor só acaba com um homem por cima. Qualquer homem, inclusive Afonso. A gorda toma a fresca abanando o leque enquanto pensa em abrir as pernas pro marido na quinta-feira. Isso, quinta-feira é um dia bom, não sei porque mas parece bom. A cachorra Neguinha arranha Cauã e ele briga com ela. A vira-lata baixa as orelhas, para de abanar o rabo e entende o recado do seu dono, que sai para trepar numa árvore. Ele sobe alto na mangueira pra ver se encontra alguma manga que possa chupar, mas não tem nada, ainda é Setembro, 15 de Setembro, e faz pouco mais de uma semana da festa de inauguração do Casarão, que foi na véspera do 7 de setembro, onde reuniram-se ali políticos, magistrados e professores da Faculdade de Direito do Recife, que constituíam as amizades ou tentativas de amizade do Doutor Afonso. Não foram muitos os convidados, apenas aqueles que tiveram influência direta em sua transferência. Ele e a família receberam os convidados na entrada e Rodolfo teve as bochechas apertadas por mais do que três dezenas de pessoas e Luiza parecia uma anã, com experiência de quarenta anos em receber e agradar convidados. Pauline não saiu do quarto e Joana não saiu da cozinha. O cumê tá pronto! Grita Lina. Cauã desce da árvore e vai até a cozinha, onde a mãe coloca, em um prato azul de plástico, arroz e feijão com charque ou a gordura da charque. Tem farinha também. Ela faz um outro prato e chega perto do colchão onde está Amauri, Tu precisa comer alguma coisa, toma, como é que vai melhorar desse jeito, toma. Amauri grunhe, queima de febre. Come que já já eu vou comprar uma garrafa de álcool e um dipirona. O homem se levanta, senta encostado na parede, parece um cavalo velho, forte, mas baleado. Pega o prato numa mão, a colher na outra, cavouca, mistura, faz uma maçaroca e come uma colherada, a farinha salpica a barba preta fechada e crespa. Lina levanta e diz, vou botar pra mim. Na cozinha, Cauã puxa um pedaço de charque com os dentes tentando separar a carne da gordura, Neguinha olha hipnotizada, até que o menino consegue e joga a gordura pra cachorra. Dona Branca, na varanda lateral, grita por Joana, quer água com hortelã, e Pauline chama as crianças para entrar. Hora de praticar piano. Começa com Luiza que tem mais dificuldades com o instrumento que seu irmão, em compensação tem melhor desempenho ao aprender línguas. Rodolfo tem grande talento pro piano, mas uma preguiça enorme que o impede de avançar. O gordo só toca quando é mandado ou em festas que seus pais dão e querem mostrar os filhos como bichos de circo bem adestrados. Ele toca, com pouquíssimos erros, uma música chatíssima como é qualquer música clássica, sua irmã vem logo depois e não passa da introdução, emperra no lá sustenido menor e fica nervosa. Pauline pede para que ela pare e ouça seu irmão, talvez assim se acalme e tente de novo depois. Fala para o gordo tocar a música que havia tocado na festa da semana anterior, pois ela não havia saído do quarto e não tinha ouvido ele tocar. Rodolfo senta e se ajeita, tem mais postura ao piano do que em tudo mais o que faz na vida, começa a tocar e Dona Branca vem rapidamente da varanda pedindo para que pare, não quer que seja tocada aquela música. Ela não fala que o motivo é que, durante a festa, Afonso também não ouviu o menino tocar, pois estava no quarto da francesa fodendo. Ali, naquela sala de piano, Amauri larga o prato ao lado do colchão ainda com um resto de comida que Neguinha vem cheirar, mas ele dá um tapa e expulsa a cachorra. Deita e respira fundo, sua muito. A comida quente e pesada bateu forte no estômago. Lina sai para a farmácia, passa debaixo da placa que informa há bastante tempo que aquele terreno é de uma construtora e será demolido em breve para dar lugar a um edifício torre única com 4 apartamentos por andar, lazer completo e famílias brancas felizes. Aquela placa está ali há tanto tempo que só notam a sua presença quando precisam abrir o portão pequeno, pois a madeira que fixa ela ao chão atrapalha a abertura completa. Em uma semana, aquela placa será cuidadosamente retirada e o casarão destruído, mas eles não sabem, e a única coisa que importa agora é o álcool e o dipirona. Os meninos são mandados pra cima, precisam tomar banho, e Dona Branca fica embaixo esfregando o braço roliço remoendo a música, a francesa e a impossibilidade de acabar com aquela safadeza, porque Afonso é homem. Homem bom, honrado e respeitado. Ela, sua mulher, deve ficar do seu lado e cuidar da criação dos filhos. Acabar com aquilo, por quê? Não tinha motivo. Enquanto pensa nessas coisas, um pensamento lhe atravessa na frente, como alguém em um museu que chega de repente e se coloca entre você e um quadro, é o dia em que viu o marido e Pauline fodendo, o homem magro como um caniço, com as calças e ceroulas arriadas na altura dos joelhos de frente para a francesa que estava sem saia e os peitos a mostra, sentada na penteadeira enquanto Afonso metia naquele monte de pentelhos loiros. Os peitos da francesa são lindos como ela é linda, tamanhos médios, mamilos rosados, bicos grandes e um caimento perfeito. Afonso metia o pau, fino como ele, e tentava chupar os peitos com o desespero de alguém que está se afogando. Mais tarde ao confrontá-lo, ele disse a Branca que precisava de mulher, mas a dele nunca estava disponível, sempre passando mal, sempre com calor. Os peitos de Pauline nunca lhe sairiam da cabeça e Branca até se sentiu excitada, chegando a um dia se tocar na banheira pensando em como seria chupá-los. Lina chega da farmácia e tira toda a roupa de Amauri, que não quer, e diz que não precisa ficar nu, mas ela insiste. É preciso para lhe dar um banho de álcool decente. Amanhã eu saio pra vender essa reciclagem, porque o dinheiro já acabou, visse? O homem só geme, enquanto ela esfrega álcool em seu peito e barriga, vira o mulato de costas e esfrega com força, pois não tem jeito de fazer nada com delicadeza. Termina, enfia o comprimido na boca do homem, que fica ali com ele amargando, enquanto ela vai buscar água. Cauã brinca com uma bola de plástico chutando no muro como se cobrasse pênaltis, a cachorra olha de longe e o goleiro é imaginário, um gordinho dos olhos claros e tristes, pois os gordos só podem ser goleiros.

Foto: Blog Antes que Suma

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Filipe Souza Leão
Discórdia

Nasci em Maceió, cresci no Recife, vivo em São Paulo e escrevo.