Entre Vistas: Eduardo A. A. Almeida e seu livro O belo e a besta

RIDÍCULA
Discórdia
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6 min readFeb 17, 2022

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O belo e a besta (Moinhos, 2021), livro mais recente do discordando Eduardo A. A. Almeida é prosa, é poesia, é reflexão, é humor, é um passeio ao zoológico onde não temos muita certeza se somos os visitantes ou os residentes. Em trechos curtos que passam zunindo pelos olhos e pelas mãos, o autor coloca em xeque os conceitos de humanidade e animalidade. Abaixo, ele fala um pouco da obra e de seu processo criativo.

Língua solta

Cuidado aí, é um precipício, tá ouvindo? Bem na sua frente! Não fica olhando para cá, olha onde pisa, é um barranco de verdade! Você também, mulher. Não fica me olhando como se nunca tivesse visto, presta atenção na trilha. Olhem para frente, vocês dois! Para a frente! Parem, parem, parem aí mesmo, puta que pariu! Nem um passo a mais. Idiotas! Antes de despencarem, o homem comentava com a esposa: que chimpanzé agitado! — Trecho do livro O belo e a besta

1) Uma coisa que não vejo muito em livros de ficção e há em “O belo e a besta” é uma parruda lista bibliográfica. No caso, sobre outras obras que tratam do humano e do animal. Como essa bibliografia te influenciou na hora que estava escrevendo?

Nessa lista final há indicações de leituras que fiz ao longo da vida, e não apenas durante a escrita de “O belo e a besta”. Eu queria que ela funcionasse também como uma espécie de capítulo do livro, por isso o título “Bibliofagia”, por isso a localização naquele “quase final”, antes da despedida, quando o livro ainda não terminou. Em outras palavras, esse universo precisava ser incorporado àquela diversidade que se apresentou nos demais capítulos, precisava ser devorado e nutrir o leitor. Entre as obras dispostas ali há, por exemplo, “Calvin & Haroldo”, que leio desde a infância, e outras recentes, de não-ficção, como “O que os animais nos ensinam sobre política”, do Bruno Massumi, que influenciou diretamente o meu projeto.

2) Já ouvi você contar sobre a escolha da capa do livro que, diga-se de passagem, é perfeita, mas conta aqui de novo pra ficar registrado.

A capa foi desenvolvida pela editora. Quando recebi o layout para aprovação, fiquei boquiaberto, era maravilhoso. Eles encontraram essa xilogravura de 1914 no acervo de um museu holandês e “apenas” acrescentaram os dados do livro. No momento da publicação, nem mesmo o site do museu trazia muitas informações a respeito, era uma obra de autoria desconhecida. Alguns meses depois, quando voltei a procurá-la, descobri que foi creditada a Samuel Jessurun de Mesquita, mestre do incrível M. C. Escher! O título seria, simplesmente, “Orangotango”. Eu, que sou entusiasta das artes visuais, fiquei ainda mais animado. É meu segundo livro com um trabalho artístico na capa — O romance “Diante dos meus olhos” traz uma pintura do amigo Felipe Góes.

3) Qual animal, caso soubesse ler, você acha que mais gostaria do livro? E qual odiaria?

Imagino que, em geral, os bichos — eu sinto dificuldade para tratar os humanos como se não fôssemos animais também — gostariam do livro porque ali estão em pé de igualdade conosco. Aliás, corrigindo a perspectiva, eles gostariam porque nós estamos em pé de igualdade com eles. Todos somos animais, todos somos dotados de existência própria, todos temos as nossas singularidades respeitadas. Se bem que, pensando melhor, a bicharada gostaria mesmo é de continuar sem ler, habitando esse lugar fora da nossa linguagem, onde pode muito mais.

4) “O belo e a besta” é um projeto bastante distinto de outras obras suas, especialmente no tom, que tem mais fanfarronice & tiradas rápidas. O tom de cada livro surge naturalmente ou é preciso fazê-lo surgir com golpes de picareta?

O tom deve condizer com o projeto. Acredito que eles surgem juntos e precisam andar assim. Meu primeiro livro, que é na realidade um conto — “Por que a Lua brilha” –, tem um tom irônico, algo petulante, pois simula um ensaio de alguém convicto da necessidade de explorar outras formas de vida. Os contos do “Testemunho ocular” são mais sombrios, enigmáticos, estranhos, pois era essa entonação que eu precisava para sugerir um borramento das imagens, ou melhor, um questionamento sobre a lucidez que elas pretendem transmitir. O romance “Diante dos meus olhos” busca, no excesso de clareza, discutir a mesma questão. Na peça “Museu de Arte Efêmera de Lethe”, o tom é trágico, já que a história remonta à mitologia grega para tratar dos dramas nossos de cada dia, que de alguma maneira são recorrentes desde aqueles tempos. “O belo e a besta” tem esse tom que você mencionou, bem e mal-humorado, porque propõe uma desconstrução das fábulas, tira sarro do moralismo, tenta desacreditar essa tradição que foi colocando os humanos num patamar diferente dos outros seres vivos, como se a linguagem e certa racionalidade fossem sinais de superioridade. Enfim, tudo isso para dizer que o tom precisa surgir naturalmente, não pode ser um trabalho forçado. Só convém não nos enganarmos, acreditando que é fácil: a naturalidade requer uma elaboração rigorosa.

5) Separar poesia de prosa faz mais ou menos sentido do que separar meias de cuecas?

Acredito que o formato também precisa condizer com o projeto, assim como o tom, como acabamos de discutir. Existem ideias que se realizam como poesia, outras como prosa, outras como uma lista de expressões populares ou como referências bibliográficas, que também são formas vistas em “O belo e a besta”. Deleuze, quando filosofa sobre o ato de criação, fala de ideias em cinema que precisam ser cinematográficas, assim como há ideias em romance que precisam ser romanescas. De modo que, quando um cineasta decide adaptar um livro para as telas, ele precisa fazer com que as ideias romanescas ressoem como cinematográficas, assumindo outra ordem, outra estrutura, o que é muito diferente de pensar que basta “fazer igual em um como em outro”, isso é impossível, percebe? A forma carrega consigo uma ideia potencial, e o contrário também se aplica, uma ideia traz consigo uma forma potencial. Uma ideia em poesia, escrita como prosa, soa dissonante, como se não pudesse exercer sua potência. A lista de expressões que incluí nesse livro, escrita como um parágrafo, provocaria uma impressão diferente, e inapropriada, a meu ver. Deleuze diz que as ideias surgem como uma necessidade, um requisito para serem criadas, e eu concordo. Essa necessidade traz consigo uma forma, que precisamos erigir. É nossa tarefa ao escrever.

6) O homem é o lobo do homem? Quem é o homem do lobo? A orelha é o lóbulo do homem?

Quanto mais idealizamos a humanidade, mais nos distanciamos de tudo o que podemos ser. Quer dizer, quanto mais humanos queremos ser, menos possibilidades de existência nos restam, é um paradoxo. Claro, ao perseguirmos uma ideia específica de como devemos agir, do que podemos fazer, de quais são os meios e modos “corretos”, ou “humanos”, acabamos restritos a poucas fórmulas. Eu nunca tinha pensado muito nisso até iniciar as pesquisas para “O belo e a besta”. Fui me encantando com tais ideias, e à sua maneira os textos do livro resvalam nelas. Ao olhar com outros olhos para os animais, percebi que precisava conhecer e valorizar a minha própria animalidade, na mesma medida em que seria ótimo desidealizar esta pretensiosa humanidade.

7) Personagens do reino animal são mais ou menos obedientes que personagens humanos?

Personagens são sempre personagens. É preciso olhar para eles com desconfiança, criar espaço para que se mostrem como são, afastar nosso preconceito tanto quanto possível. Talvez os personagens “bichos” sejam um desafio ainda maior porque fomos por toda a vida condicionados a olhar para eles segundo a perspectiva do humano. Desativar esse mecanismo é muito difícil, talvez seja uma utopia, que no entanto cabe a nós buscar.

8) Rir faz sentido ou nos ajuda a destruí-lo, reinventá-lo?

Rir, em “O belo e a besta”, é a melhor saída. “O humor é o derradeiro ato de dignidade perante o abismo”, diz a frase de abertura do livro. Acredito que poder rir de nós mesmos é criar abertura para alguma transformação. É nos tornarmos um ser humano despretensioso, desinteressado, de algum modo livre das amarras da própria humanidade, e poder existir de outras formas, viver outros sentimentos, experimentar algo fora do manual. Todavia, não quis escrever um livro de piadas, mas algo que provocasse um riso nervoso, que de fato pudesse levar o leitor até a beira do abismo. E deixar para ele decidir o que fazer a partir daí.

Sobre o livro:

O belo e a besta

Eduardo A. A. Almeida

Moinhos, Abril de 2021

118 páginas

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RIDÍCULA
Discórdia

Nathalie Lourenço, publicitária e ridícula de nascença. Autora dos Livros Morri por Educação e Sabor Idêntico ao Natural. https://linktr.ee/natlourenco