Farpa

RIDÍCULA
Discórdia
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4 min readJul 21, 2021
Ilustração de Pablo Amargo

Conto escrito no desafio Mundial de Escritura

Minha Sara, escrevo esse e-mail para que não possa lê-lo. Justo você, que sempre foi minha leitora favorita, para quem eu sempre mostrei as matérias onde, olho clínico, você encontrava as palavras que precisavam ser amputadas para que os parágrafos ficassem saudáveis, justo você, corretora-mor até de minhas mensagens de e-mail, de whatsapp, está bom assim, talvez seja melhor terminar com dois-pontos-parênteses, um sorriso para ficar simpático. É graças a você, provavelmente, que me consideram afável no trabalho, e não o homem que acorda querendo virar as lixeiras a pontapés.

Essa afabilidade triste me fez mal, de certa forma, com o Ricardo a sempre a me passar as matérias mais desoladoras, sabendo que eu não iria reclamar ou me recusar. Foi o que aconteceu nessa semana, quando recebeu uma ligação estridente, nem mesmo o policial pôde evitar chorar ao nos chamar para cobrir o caso do pai que buscou os dois filhos na escola e chegando em casa os assassinou. Os sufocou com o cinto, que depois amarrou no gradeado da escada e usou para se enforcar. O corpo balançava mesmo sem vento, dentro de casa. As crianças estavam arrumadas paralelas, esticadas durinhas como gravetos no chão. O pequeno usava meias do Ben 10, estava ainda no maternal, e a perícia tirava fotos do rosto diminuto como se fosse para uma espécie de anuário. A mãe, o que restava dela, respondia às perguntas da polícia.

Me senti grato por você estar viajando, não ter que contar dessas coisas, não te dar metade do horror para carregar. Fiquei até a madrugada escrevendo a matéria. Me doía. Tinha pena das pessoas que leriam aquilo, ficariam tristes, caminhariam pelas ruas com a injustiça pairando ao redor. Organizei e reorganizei os parágrafos, achei uns cacos de sentimento meu entre as frases, tirei. Tudo o mais direto possível, para que ninguém pudesse se ferir. Notei que faltava um depoimento do sargento, de quem peguei o número no local do crime. Era tarde, eu estava com sono e não iria atrapalhar o homem a essa hora. Enviei o artigo para Ricardo a tempo dele editar antes do fechamento da edição, poderia acrescentar o depoimento mais tarde, na versão online.

Na manhã seguinte, folheei o jornal e a história não estava lá. Falei com Ricardo e não só ele não tinha recebido meu e-mail como ignorava o caso completamente. Não sabia de nada sobre a ligação chorosa, o assassinato, nada. Achou que eu estivesse estranho, me sugeriu tirar aqueles dias de folga que andava me devendo. Disse que não queria, afinal estou juntando essa folga para a nossa viagem para Califórnia no fim do ano. De volta à minha mesa, abri a pasta de e-mails enviados. Nada. Enfim, achei a matéria na pasta rascunho, nunca tinha chegado a sair do meu computador. Resolvi aproveitar para ligar para o sargento, pedir uma ou duas linhas sobre a marcante ocorrência do dia anterior. Para minha surpresa ele também não sabia de nada. Disse que, pelo contrário, o dia anterior tinha sido tranquilo, um bate-boca entre vizinhos, uma festa barulhenta e um roubo de celular. Sara, foi muito estranho e você não estava por perto para me tranquilizar. Revisei uma vez mais a matéria, ali eu não citava o nome da escolinha maternal e primária onde as crianças passavam as manhãs, mas eu sabia qual era. Não era longe. Em meia hora eu estava lá, a tempo da saída. As mesmas crianças que eu tinha visto atravessadas sobre o carpete caminhavam com perninhas pouco firmes de criança, cada uma em uma mão da mãe. Juro para você Sara. Os mesmos rostos pequeninos mas em cores. A mesma meia do Ben10.

Passaram por mim sem notar. Claro, nunca tinham me visto. Sara, será possível que como a notícia não saiu ela nunca aconteceu? Que ao transformar um acontecimento em história em prendê-la num papel ela se torne uma verdade impossível de apagar? Se sim o meu sono e desatenção fizeram algo magnífico na noite de ontem. Mas como trabalhar agora sem pensar no ônibus tombado do dia anterior e no tiroteio da semana passada? Em tudo que tornei impossível de desfazer.

Estou agora em casa e escrevo esse e-mail porque é estranho, inconcebível não te contar. Mas tenho medo que se essa história for publicada, mesmo que em um e-mail, um inocente e-mail na sua caixa de entrada, os acontecimentos voltem a se realojar na realidade como uma farpa na carne. Então ficará aqui, entre os rascunhos. Foi o jeito que encontrei.

Nos vemos na terça.

Te amo.

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RIDÍCULA
Discórdia

Nathalie Lourenço, publicitária e ridícula de nascença. Autora dos Livros Morri por Educação e Sabor Idêntico ao Natural. https://linktr.ee/natlourenco