Leopold Bloom passou por aqui

Alex Xavier
Discórdia
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3 min readJun 16, 2021
Estátua de James Joyce em Dublin — Foto: Wikipedia

Estive em Dublin, em um 16 de junho, andando por aí com Leopold Bloom. Mas esse passeio só faria sentido anos depois, quando eu estava muito longe da Irlanda e nem podia sair muito de casa. Em 2020, no meio dessa pandemia interminável, desenterrei da estante meu exemplar do Ulisses, de James Joyce, como companheiro de isolamento. Vale explicar que sou um leitor sem pressa. Levo tanto tempo em um único parágrafo que muitas vezes volto algumas páginas para me lembrar de quem ele estava falando. Da mesma forma, caminho devagar, desde que descobri um tipo de Parkinson e adotei uma bengala para ajudar a perna esquerda a dar suas passadas.

Já fui adepto de um trote mais vertiginoso. Com 1,84 metro e cambitos longos, costumava obrigar namoradas mais baixinhas a quase correrem para me acompanhar. Uma delas estava comigo nessa maratona etílico-literária que passava por pubs e museus de escritores. Às vezes, você parava para tomar um pint no bar ou olhar uma vitrine de loja ou tirar uma foto de um ponto turístico e um quadro na parede ou uma placa no chão avisava que Bloom, Dedalus e outros personagens haviam “passado” por ali. O problema é que nenhum de nós havia lido o livro e as referências pareciam soltas.

Demorei treze anos para preencher as lacunas daquela caminhada, em um esforço de projeção mental duplo — como se acompanhar as experiências de linguagem e formato de Joyce já não causasse uma pane em qualquer sistema. Primeiro, vislumbrei os locais de Dublin pelos quais havia circulado e que eram citados no livro. A Sweny’s Pharmacy, o pub Davy Byrne, a Biblioteca Nacional, o Merchants Arch, mesmo o Rio Liffey e a fábrica da cerveja Guinness ganharam alma nas minhas lembranças.

O segundo desafio do meu cérebro foi absorver o clima flàneur na realidade atual. Trancado no meu apartamento por meses, adotando o home office, evitando encontrar quem quer que fosse e mantendo distância de aglomerações, foi um choque ler um épico do cotidiano sobre um sujeito que foge do lar, atravessa a cidade por ruas lotadas de gente, esbarra em um monte de conhecidos e ainda confraterniza com eles. Sem máscara ou álcool em gel. Nem me lembro mais como era a vida antes da Covid. Os cenários são comércios, bares, uma escola, uma praia, uma igreja, um hospital — tudo bem, é uma maternidade, mas quem se importa? Bloom participa de um enterro, trabalha presencialmente em um jornal, farreia em um bordel, divide mesão em um albergue e acaba recebendo Dedalus em casa. Nem se lava antes de deitar na cama ao lado de Molly. Enquanto isso, eu ia do quarto para o banheiro, do banheiro para a cozinha, da cozinha para a sala. E quando precisava sair da minha bolha e fazer o mercado, bloqueava ao máximo as tentativas de contato com outras pessoas — o oposto do conceito de flanar.

Mas sempre fui de bater muita perna, fosse na minha cidade ou em viagens. Até perder a coordenação e o equilíbrio dos meus membros do lado esquerdo e uma simples volta no quarteirão me deixar exausto — e um pouco receoso de cair, com tanta calçada ruim. Levei seis meses para terminar o livro e, a cada capítulo, precisava pesquisar sobre ele e me certificar de que entendi tudo. Talvez, de tanto mentalizar um passo após o outro, dos pés dos personagens e dos meus, o cognitivo foi ativado e o fim da leitura coincidiu com uma visível melhora dos meus movimentos. Não vou dizer que o remédio que comecei a tomar na mesma época não tenha nada a ver com isso, só que, como escritor, supervalorizo o placebo da literatura. Desde então, fui mais longe nos meus passeios. De máscara, claro. E bengala, o que me remete agora à estátua de Joyce na Earl Street, apoiado em uma com muito estilo.

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Alex Xavier
Discórdia

Jornalista e escritor. Mas queria ser escritor e jornalista. Autor dos livros O teatro da rotina e Não vai dar tempo (ambos da editora Patuá)