Nu

Filipe Souza Leão
Discórdia
2 min readFeb 6, 2019

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Você já viu seu pai nu? Talvez seja normal na sua família que todos se vejam nus. Tem família que é tranquilo, na minha não, mas eu sei que tem família que a mãe anda peladona pela sala, a filha prepara sanduíches com os peitinhos de fora, o filho sai do banho com o pau balançando até chegar no quarto, o pai senta no sofá em cima do saco grande e murcho. Eu acho estranho, mas tudo bem. Cada família com seus costumes. Eu nunca tinha visto meu pai nu, primeiro por que não morei tempo suficiente com ele para que, por acaso, abrisse a porta do banheiro que ele esqueceu de fechar e o surpreende-se nu, e porque também quando moramos juntos eu era muito pequeno e desse tempo só tenho lembranças do quadro pendurado na parede da sala, dois olhos grandes pintados que me assustavam. Então, a primeira vez que vi meu pai nu foi no banheiro do Hospital Universitário, na ala dos pacientes internados com doenças do sistema respiratório. Ele e seu um metro e setenta fraco, debilitado pelo câncer que àquela altura se espalhava para órgãos além dos pulmões, metástase, sentado em uma cadeira branca de plástico enquanto eu passava sabonete nas suas costas, xampu na sua cabeça. A segunda vez em que vi meu pai nu foi quando a enfermeira chegou com uma sonda da grossura de um canudo de beber milk-shake e disse, enquanto passava xilocaína tranquilamente na sonda grossa que iria entrar pelo buraquinho fino do pau do meu pai, uretra, que era melhor eu sair ou olhar pro outro lado enquanto ela fazia o procedimento. A sonda vesical chegaria na bexiga e assim não precisariam trocar tantas vezes a sua fralda, evitariam assaduras e uma série de outras coisas. Depois disso eu não vi mais meu pai nu. Ele não tomou mais banhos, a não ser aquilo que as enfermeiras chamavam de banho, virar meu pai de um lado pro outro na cama, passar uns panos molhados, passar uns outros secos e pronto, era isso que elas chamavam de banho. Depois disso eu só toquei no pau do meu pai. Não por que quisesse, mais por não ter outro jeito. Isso aconteceu na noite anterior à sua morte, enquanto ele urrava de dor e tentava arrancar todas as sondas, fios e tubos ligados ao seu corpo. Sonda nasogástrica, sonda vesical, respirador, monitoramento cardíaco, acesso intravenoso. Ele não falava, apenas urrava, e eu, deitado abraçado a ele no leito de número 5 da enfermaria 2, segurava seus braços e pedia calma. Morfina e um rápido momento de tranquilidade. Cochilo. Meu pai logo acordou, livrou-se da minha mão, enfiou na fralda e tentou arrancar a sonda vesical. Tirei sua mão a tempo, a sonda continuou lá, mas eu já havia pegado no pau do meu pai.

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Filipe Souza Leão
Discórdia

Nasci em Maceió, cresci no Recife, vivo em São Paulo e escrevo.