Patavinas Poéticas
Discórdia
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4 min readDec 24, 2018

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Nutella County

Conto criado para Alex Xavier, no amigo secreto literário do Discordia. Tema pedido: um lugar que não existe.

A primeira vez que ouvi falar em Nutella County, eu estava em uma viagem pela Europa. Fazia a passagem entre França e Espanha de ônibus quando sentou ao meu lado uma legítima nutellina. Começamos uma conversa quando ela disparou a gargalhar durante a leitura da primeira página do jornal. A manchete tratava da possibilidade do fim da produção do creme de avelã pelo fato das mudanças climáticas estarem mirrando as colheitas desta fruta seca.

A gente nem tinha se apresentado ainda, mas achei aquele tom de deboche tão peculiar que resolvi questionar (em inglês, claro, pois até ali ainda não sabia de onde era aquela moça): Por que você acha isso tão engraçado? Ela olhou pra mim e soltou uma espécie de peido com a boca, como se o que eu estava perguntando fizesse ainda menos sentido.

A mulher me olhou de cima a baixo e começou a bradar num inglês macarrônico (ou devia dizer nutellônico?) que aquilo era tudo bullshit, que Nutella não dependia de amêndoa, de óleo de palma, de cacau ou de qualquer outro ingrediente para ser produzida. Oi??? Foi a minha reação, em português mesmo. E não é que ela meio que entendeu o que eu falei. Não sei se pela minha expressão ou se por realmente compreender o português (depois eu viria a saber que em Nutella County, eles falavam um idioma que era uma mistura de romeno com francês e que aquele “oi” era facilmente identificável para ela).

Mas voltando à sua troça de que não eram necessários nenhum daqueles ingredientes, perguntei do que, então, a Nutella era feita? Ela riu mais uma vez, sem a necessidade de peidar com a boca, e respondeu que Nutella não era feita, Nutella dava em rio. Os nutellianos apenas colhiam o material e envazavam.

Por um momento, tive a certeza de que estava sentada do lado de uma louca. Primeiro, ela falou de seu país, de onde se localizava (aqui, não quero entrar em detalhes, pois sou péssima com mapas e confesso que aquela moça me deixou mais confusa ainda, talvez porque tenha criado posições geográficas que na minha cabeça nunca existiram), depois, contou da extensão e da riqueza natural de seus pântanos produtores da iguaria doces e de como sobrevivia basicamente de sua exportação. Tudo isso para provar que, sim, a Nutella não era fabricada como imaginávamos, mas era retirada de lagos borbulhantes, podendo qualquer nutellino envazar o material e oferecer para o mercado externo.

Sim, era mais que necessário exportar o material, pois em Nutella County, como a população sabia de sua procedência e achava aquilo meio nojento, além de claro, também estarem saturados desse doce, ele era pouco consumido via oral, se é que me entendem. O creme de avelã, ou não tão de avelã assim, como ela jurava ser, era geralmente usado como pomada para cicatrizes, shampoo para quedas de cabelo e banhos de beleza.

Aliás, ela dizia, mais uma vez com aquela risada peidorenta, a primeira vez que um vídeo de uma pessoa em uma banheira de Nutella viralizou, adivinha de onde era? Nutella County, claro!

Eu não sabia se ria, se chorava, se internava aquela menina, que detalhe, usava um sachezinho daqueles de café da manhã de hotel de Nutella como gloss. Depois daquela conversa, continuamos a viagem, que ainda duraria umas duas horas, sem trocar muitas palavras. Toda aquela história me encafifara.

Ainda me custava acreditar que tudo aquilo era verdade. Não tanto pela forma como a Nutella era produzida. Afinal, pelo o que ela contara, eu, que era grande fã do doce, estava aliviada de saber que ele não corria riscos de extinção. O que me chateava era ver como os nutellianos desperdiçavam aquela iguaria, esfregando-a no rosto, fazendo sessões de ofurô e outras coisas. Cheguei a imaginar eles coando o material após uma banheirada e reinvazando o líquido para ser vendido no Brasil. Aquilo me enfureceu.

Mas como não sou de guardar qualquer tipo de birra nem nada, assim que estávamos prestes a sair do ônibus e cada uma de nós seguia para o seu destino, saquei de minha bolsa um pote de Paçoquita e entreguei para a nutelliana. Ela me questionou o que era aquilo e de onde vinha. Expliquei resumidamente do que se tratava e contei que a origem era Paçoquita County. Afinal, se ela podia jogar, eu também poderia.

A moça abriu o vidro, deu uma dedada no conteúdo e meteu a Paçoquita na boca. Ficou ali, impedindo a saída dos outros passageiros por pelo menos cinco minutos. Ela parecia uma degustadora profissional. Dizia cada nota, cada ingrediente que conseguia identificar na Paçoquita. Me agradeceu fortemente e disse que iria levar aquele sabor tão especial para seu país. Eu ri, achando que os nutellianos fariam pouco de nossa humilde produção quando tinham em mãos o doce mais delicioso do mundo. Mas enfim, nunca se sabe.

Tempos depois, de volta ao Brasil, ao fim da minha viagem, tive certeza de que a Paçoquita tinha feito sucesso por lá. Não sei se eles conseguiram reproduzi-la ou, diante da magnitude de seu sabor, decidiram parar com a colheita daquele líquido escuro e precioso que existia em seus pântanos. Sei que no Brasil, os quiosques de Nutella, altamente populares nos shoppings, fecharam, os vidros do doce eram cada vez mais raros nos supermercados e o que realmente chegava ao país era impossível de comprar de tão caro.

Não me venham com a alta do dólar, do euro ou de qualquer outra moeda. Sei que o que encareceu a Nutella: foi o dissabor que os nutellianos tiveram com ela ao conhecer a Paçoquita. Embora eu tenha ficado triste com a perda do meu doce favorito, uma coisa é certa certeza. Jogo é jogo e, entre amendoins e avelãs, venceu o mais forte.

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