O inimigo dorme e sua mulher está livre

Alex Xavier
Discórdia
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8 min readJul 10, 2020

Em um apartamento térreo de Manhattan, em Lower East Side, Lilian joga um sobretudo azul marinho em uma caixa de papelão com a anotação “Doações”. Há outra caixa, na qual se lê “Depósito”, e um saco grande de lixo. George, que fechava uma caixa menor com fita isolante, atravessa a sala, pega a vestimenta e dá uma olhada nela.

― Pôxa, Lili, tem certeza? É um Burberry.

― Nunca vi meu pai com isso.

― Achei descoladão.

― Descolado demais pra ele.

― Vou provar, tá?

― Ou pra você…

― Olha só. Coube direitinho.

― Um trapo. Tem até um furo no ombro.

― Só não consigo fechar os botões.

― Isso já é culpa dessa pança aí.

― Nem vem. Tenho o biotipo do seu pai.

― Quer mesmo ficar com o casaco de um morto?

― Fala como se eu estivesse roubando do defunto no velório.

― George, só quero acabar essa arrumação e levar minha mãe lá pra casa.

― Espera. Tem algo no bolso.

George saca um envelope branco com tom amarelo mofo. Dentro, uma folha de papel dobrada em três partes, uma carta. Presa com um laço vermelho, uma mecha de cabelo escuro cai da correspondência.

― A letra do papai. “Nova York… 20 de dezembro… 1971”.

― Caraca! Seu aniversário.

― Eu tinha três anos…

― Estranho… Nenhum destinatário.

― É, nem no envelope.

― E esse cabelo é seu?

― O meu era clarinho. Escureceu bem depois.

― Do Leo também não deve ser.

― Papai não foi careca a vida toda, George.

― Bem, sua mãe já era cabeleireira na época? Pode ser de qualquer um.

― Me deixa ler, por favor?

Lilian lê a carta escrita à mão, endereçada a outro homem, cujo nome nunca aparece. Uma mensagem de amor e ódio ao dono do sobretudo azul, que certa noite, levou as preocupações do olhar de sua mãe e, em troca, deixou uma mecha do seu cabelo.

― Vixe. Tá pensando a mesma coisa que eu?

― Cala a boca, George.

― Dona Jennifer, hein? Quem diria?

― Ela não era disso. Para de falar merda.

― Ok, é que… parece bem claro, né?

― Não tem nada claro. Que homem é esse?

― Dá a entender que era bem próximo. Um amigo? Um irmão, talvez.

― Será que… minha mãe meteu um chifre no meu pai?

― Acontece, ué? E, pelo visto, ele levou numa boa.

― Como assim?

― Não diz na carta que perdoou e tudo? E até…

― Até o quê?

― Então… Pra mim, ele abre a possibilidade de rolar uma reprise.

― Ele nem enviou a carta, imbecil.

― Vai ver curtia assistir, sabe?

― Você é doente.

― Por que não pergunta logo pra sua mãe?

― Ela nem lembra de ter enterrado o marido ontem. Quer que eu pergunte sobre um amante de meio século atrás?

― A cabeça dela não guarda lembranças novas. As velhas devem estar fresquinhas lá dentro.

Lilian guarda a carta no envelope. Em seguida, arranca o sobretudo do marido e sai sem dizer nada. Vai até o quarto da mãe, bate duas vezes e abre. Jennifer está em uma poltrona olhando para o vazio enquanto sua cuidadora guarda roupas em uma mala.

― Marlene, pode me deixar um instante com ela, por favor?

― Claro. Mas faço o quê com todos esses discos velhos.

― Ai, nem sabia que eles escutavam música. Depois vejo isso.

A mulher sai e Lilian se senta na borda da cama, de frente para Jennifer, que não lhe dá atenção. Então, toca o braço da mãe, que sai do transe e sorri.

― Oi. Sou sua filha.

― Claro que é. Minha pequena Lili.

― Sim, sim. Mãe, você conhece esse sobretudo?

― Meu deus, onde achou essa coisa velha?

― Tava nas coisas do papai. Mas não era dele, era?

― Vai ter que perguntar a ele.

― Ele… Eu não posso, mãe. Preciso que você me diga. Quem usava esse sobretudo rasgado?

― Ah, tinha esse rapaz.

― Isso! Que rapaz era esse?

― O dono do casaco. Eu achava nada a ver, mas ele amava. No inverno, nunca tirava essa coisa. Todo metidão, jogando charme como um amante latino. Hahaha. Você tinha que ver.

― Tá. Mas, mãe, você conheceu esse homem antes do papai?

― Ele gostava de me fazer rir. Dançava feito um cigano, com uma rosa entre os dentes. Haha.

― Achei que você e o papai namoravam desde o colégio.

― Filha, pra que revirar isso? Seu pai odeia quando menciono o passado. Cadê ele, afinal?

Jennifer se levanta, vai até a janela e grita por Leo duas vezes. Na calçada, George coloca caixas no porta-malas do carro. Ele acena de volta para a sogra.

― Onde ele vai agora? Espero que não queira se isolar de novo.

― Mãe, vem pra cá. De quem você tá falando?

― Ele veio com essa de religião do futuro agora.

― Religião?

― É. Eu, grávida, e o desgraçado falando em se encontrar, alcançar um estado de clareza.

― Grávida? Eu não…

― Ele vai me deixar sozinha com a Lili, Marlene.

― A Marlene tá… Eu sou sua filha.

― Claro que é. Vê se a Marlene já fez meu chá, filha.

Lilian ajuda a mãe a voltar à poltrona, beija sua face e sai. No corredor, encontra Marlene e pede que ela prepare qualquer tipo de chá que tenha sobrado na cozinha. Na sala, George sofre para levantar a caixa de doações sozinho.

― E aí? Ela confessou?

― George, uma coisa horrível passou pela minha cabeça.

― Eu sei. Não deve ser fácil imaginar os pais participando de surubas.

― Que suruba o quê, seu idiota?

― Anos 60. Amor livre. Tem que entender que…

― Acho que meu pai não era meu pai.

― Oi?

― Esse outro cara, o conquistador de sobretudo azul.

― O matador?

― Ele engravidou a mamãe e foi embora.

― Mas… e o Leo?

― O papai… O Leo me assumiu enquanto o outro se juntava a alguma seita no meio do deserto, sei lá.

― Uau!

Marlene sai da cozinha com uma bandeja. Lilian a interrompe no corredor, pega a xícara de chá e volta ao quarto da mãe, desta vez, sem bater na porta. Mais um toque no braço de Jennifer, que retorna à Terra com outro sorriso. A filha a serve e se senta na borda da cama de novo.

― Mãe, preciso saber a verdade.

― Que verdade, Lili?

― Quem é o rapaz do sobretudo azul?

― Ora, o seu pai. Ele adorava aquela roupa.

― Entendi essa parte. Mas qual o nome dele?

― A manga estourou no dia em que ele partiu.

― Ele era amigo de vocês, não era?

― Eu fui atrás dele até a Grand Central. Quando puxei, fez um rasgo no ombro.

― Nem quero encontrar esse cara, sabe? Se fui apenas um floco de neve na vida dele…

― Da janela do trem, ele cortou um troço do topete e colocou na minha mão.

― Nunca vou perdoar esse estranho, seja ele quem for.

― Quando o Leo voltou, ainda estava rasgado. Três anos e nem pra arrumar, acredita nisso?

― O Leo? Mas, mãe, e o cara… e o meu pai?

― Acho que teu pai nunca mais usou seu famoso casaco de novo. Se usou, não foi comigo.

― Espera. O casaco… era do papai mesmo ou não?

― Pergunta pra ele. Onde o Leo se meteu? Leo!

Jennifer derruba a xícara, vai à janela mais uma vez e vê George amarrar a bagagem no teto do carro. Ela grita por Leo e o genro acena, sem graça. Marlene entra no quarto e ajuda a tranquilizar a senhora e colocá-la na poltrona. Com o sobretudo no braço, Lilian vai para a sala e larga o corpo sobre o sofá. O marido entra e se senta ao seu lado.

― Novas revelações?

― Ou sou filha de um amante desconhecido da minha mãe…

― Tem cara de poliamor isso aí.

― … ou meu pai mudou muito quando se arrependeu de abandonar minha mãe grávida.

― Err… Não entendi.

― Meu pai era o dono do sobretudo… eu acho.

― Tá. E quem era o outro sujeito?

― Ele também.

― Hã? Teu velho acordou de madrugada e escreveu uma carta pra ele mesmo?

― Não. Escreveu pro antigo Leo, aquele jovem mulherengo que não sabia o que queria.

― Sei não. Acho que faz mais sentido seus pais frequentarem swing às escondidas.

― Ele sumiu, sentiu falta da minha mãe e voltou antes do meu aniversário de três anos.

― Ok, ok. Já sei como descobrir a verdade.

― A verdade se perdeu no tempo e na memória.

― Que tal fazer um teste de DNA com isso?

Lilian arranca a mecha de cabelo da mão de George e a joga no saco grande de lixo. Em troca, deita o sobretudo no colo do marido.

― Só não costura o rasgo no ombro, tá?

“Famous Blue Raincoat”

de Leonard Cohen

It’s four in the morning, the end of December
I’m writing you now just to see if you’re better
New York is cold, but I like where I’m living
There’s music on Clinton Street all through the evening.

I hear that you’re building your little house deep in the desert
You’re living for nothing now, I hope you’re keeping some kind of record.

Yes, and Jane came by with a lock of your hair
She said that you gave it to her
That night that you planned to go clear
Did you ever go clear?

Ah, the last time we saw you you looked so much older
Your famous blue raincoat was torn at the shoulder
You’d been to the station to meet every train
And you came home without Lili Marlene

And you treated my woman to a flake of your life
And when she came back she was nobody’s wife.

Well I see you there with the rose in your teeth
One more thin gypsy thief
Well I see Jane’s awake —

She sends her regards.
And what can I tell you my brother, my killer
What can I possibly say?
I guess that I miss you, I guess I forgive you
I’m glad you stood in my way.

If you ever come by here, for Jane or for me
Your enemy is sleeping, and his woman is free.

Yes, and thanks, for the trouble you took from her eyes
I thought it was there for good so I never tried.

And Jane came by with a lock of your hair
She said that you gave it to her
That night that you planned to go clear

— Sincerely, L. Cohen

Esse conto foi escrito durante a oficina Submarino, de Ronaldo Bressane, como um exercício inspirado por uma canção.

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Conheça também meu livro O Teatro da Rotina, sobre absurdos do cotidiano.

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Alex Xavier
Discórdia

Jornalista e escritor. Mas queria ser escritor e jornalista. Autor dos livros O teatro da rotina e Não vai dar tempo (ambos da editora Patuá)