Outros carnavais

Alex Xavier
Discórdia
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5 min readFeb 14, 2021

No ano em que não houve carnaval, um conto sobre um ano no qual o carnaval nunca acabou

Oito e Meio (8½, 1963), de Federico Fellini, e O Sétimo Selo (Det sjunde inseglet, 1957), de Ingmar Bergman

Lembro do carnaval de 2022 como se fosse hoje. Interminável. Para alguns, nem acabou. Segue, sem intervalo, desde o primeiro confete, o primeiro grito, o primeiro passo sobre passo, o primeiro ilê ayiê daquele ano. Seja lá quando foi isso. Teve tanto pré-carnaval, que ninguém se lembrou de celebrar o réveillon. Estavam distraídos caindo na folia. Sério, coisa de louco, um bloco emendando no outro, sem hora para acabar. Quem entrava não saía mais. Nunca mais. Começava no Menino Rosa, Menina Azul, antes do Índio de Jeans Não Morre, que se juntava ao Estrupa, Mas Num Mata e, quando se dava conta, estava no Familícia Delícia, torcendo para encontrar o Vô Trabalhar Até Morrer. Nada, você ia pela direita e caía no Di, Tá Dura. Pegava a esquerda, era levado pelo Empreendedores, Uni-vos. No final, era tudo uma festa só, todos os dias, de manhã, de tarde e de noite, madrugada adentro. Você nem sentia que tinha escolhido o babado errado e perdido algo importante em outro canto. Depois desse esquenta, que jamais deixou a temperatura cair, veio o carnaval de fato. Foi centenário da Semana de Arte Moderna e uma galera quis homenagear Anita, Mário, Oswald, Di Cavalcanti, Brecheret e Villa-Lobos. Outros preferiam lembrar Dom Pedro I, José Bonifácio, Imperatriz Leopoldina e Marquesa de Santos, pois também se comemorava o bicentenário da Independência. Todas as agremiações versando sobre os mesmos temas, como se fosse apenas um único e descomunal desfile. Ninguém percebeu quando a avenida se confundiu com as ruas, juntando o folião ao mendigo. Já não dava para afirmar quem era passista e quem só estava de passagem, nem onde começava uma escola e terminava a outra, se o carro era alegórico ou de passeio, se o enredo incluía o folclore amazonense ou se era o próprio Festival de Parintins, tudo misturado. Havia um boato de que já estávamos em junho. A ONU e a imprensa estrangeira criticaram, várias vezes, a total omissão do Itamaraty em debates internacionais, mesmo naqueles que diziam respeito ao Brasil. Sim, estavam cientes do costume nacional de deixar tudo para depois do carnaval. Mas se surpreendiam com a extensão dessa atividade tão peculiar. E ninguém deu atenção aos gringos. Só diziam “vai passar, vai passar”. Depois a gente agita os punhos, quebra as vidraças, revira os carros e corta a cabeça do rei. Depois a gente retira a lama, apaga o fogo e contém o óleo. Depois a gente faz as contas, soma as perdas e subtrai os lucros. Vai passar. Mas não passava. Até a Fifa perguntar se, por acaso, ninguém daqui cogitava mandar representantes para a Copa daquele ano. Rolou uma tentativa da CBF no sentido de reunir uns jogadores. Todos, porém, estavam ocupados como destaques nos desfiles, a maioria em várias escolas, ou mesmo em todas, de mais de uma cidade. Os craques da Europa prestigiaram a festa e nunca mais foram vistos nos gramados, daqui ou de lá. Li em algum lugar que deixaram para o Mundial de 2026. Isso mesmo. Prometeram que, até lá, o carnaval de 2022 teria acabado e o ano, começado de verdade. Promessas ocas, concordo. Esses cartolas não entendem a essência do brasileiro, um povo festivo por natureza, sempre alegre e unido, não importa a dificuldade. Não desanimaram nem quando as pessoas começam a se matar de tanto sambar, literalmente. Óbvio, já tinha morrido gente antes. Quando que não morre gente no carnaval, não é? Faz parte das estatísticas ter umas confusões. Tanta arma na mão da população… Como uma bala perdida não vai encontrar alguém no meio de uma multidão de duzentos milhões, em todas as ruas e praças, do Itaimbezinho ao Monte Roraima? Normal. E esses jornalistas que passam meses transmitindo desfile ao vivo sem parar nem para comer ou ir ao banheiro? Morre mesmo, acontece. Agora, a galera ficou preocupada de verdade quando celebridades começaram a se atirar das torres dos carros-alegóricos e as escolas foram perdendo pontos no quesito harmonia, um atrás do outro. Quem tentou recolher os corpos foi pisoteado pela bateria, tanto no recuo como na evolução. Imagina a tensão. E o relógio correndo, por semanas a fio. E aquele portão, que ninguém sabia mais onde ficava. Perdi um grande amigo que, já em novembro, passou por um arco qualquer e parou de cantar e dançar, achando que, enfim, havia chegado à dispersão. Só então avisaram que ali começava o Galo da Madrugada. Acredita? Ele tinha se perdido da sua ala lá por maio. Teve um piripaque qualquer e caiu durinho na hora. Não foi só ele. Clima pesado no país todo, as pessoas sambando cabisbaixas, diversas histórias assim no final do ano, que não começou e ameaçava não terminar. Roberto Carlos até cancelou o especial na Globo, não fazia sentido. Em janeiro, houve pânico no lançamento da vinheta do carnaval de 2023. Estudiosos alertavam para o perigo de deixar as duas festas se encontrarem, virarem a mesma coisa imparável e ninguém mais conseguir afirmar qual ano se iniciava. O governo autorizou o envio de fake news por WhatsApp, dizendo que serpentina e confete causavam câncer de pele, tudo para dispersar a horda. Inútil. Uma campanha foi ao ar com o jingle “Deixa o samba morrer, Deixa o samba acabar”. Nada, ninguém se importava mais se o dólar subia ou caía, se a Petrobras era americana, sueca ou chinesa, se a maioridade passou para catorze, doze, dez anos, se usar camiseta com qualquer tipo de estampa seria considerado um ato terrorista, se para ser atendido em hospital público o doente precisava adquirir uma Tele Sena e aguardar o sorteio. A única notícia que importava era se a felicidade contagiante seguia se alastrando, fosse uma procissão, um velório, uma via crucis ou uma carreata. Hein? Como assim? Que eleição? Vixe, tinha eleição marcada em 2022, né? Sei lá. Acho que esqueceram. Ninguém liga mais para essas coisas. Imagina, leitura biométrica com tanta purpurina. Não tem a menor condição. Tudo bem, deixa como está. Pelo menos, estamos dançando. Segue em frente, não olha para trás. Vamos cantar o Egito e endeusar o faraó. O importante é jamais sair do ritmo. Só não se pode parar o Brasil.

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Alex Xavier
Discórdia

Jornalista e escritor. Mas queria ser escritor e jornalista. Autor dos livros O teatro da rotina e Não vai dar tempo (ambos da editora Patuá)