pizza

Filipe Souza Leão
Discórdia
Published in
5 min readJan 11, 2018

É durante a apresentação do coral infantil, com os olhos fechados, que o pastor Romualdo Neto sente o corpo magro e pequeno pesar muito, muitíssimo. As pernas finas doem, fraquejam, não lhe deixarão ficar de pé. Os bracinhos não conseguirão apoiar e levantar o corpo, que agora parece enorme e pesado, largado na poltrona. Quilos puxam as pálpebras, pressionam as têmporas, pousam na cabeça e sua mente é uma bolha. Leve, vazia. Tenta baixar a cabeça, mas o pescoço está rígido. Luta para trazer a bolha que voa para perto de si, pois percebe a muitas quadras de distância, vozes fininhas cantando o refrão. Alvo mais que a neve, alvo mais que a neve. Ao fim da apresentação terá que pegar o microfone, dizer algumas palavras e fazer uma oração que despedirá o povo. Agora, pode ficar com os olhos fechados, a congregação imagina que está orando, buscando, imerso na presença do Pai. Não pode esquecer de agradecer a todos e citar mais uma vez o quinquagésimo aniversário da igreja. Será o último esforço, o derradeiro daquela longa semana de comemorações e cultos diários. Percebe sua respiração longa, abre os olhos e vê aquele corpo, pequeno e magro, que nem parece seu. A roupa, uma armadura. Olha para a igreja lotada, gente pelos corredores, vão querer falar com ele, apertar sua mão, abraçar, falar, comentar, dizer, abençoar. Deseja sair correndo, tirar tudo aquilo, tirar aquele nó de forca que prende a garganta e estar só, completamente só. Não ser o pastor e nem ser Neto, queria ser quem é, somente existir, sem isso ou aquilo. Sem isso e aquilo. Uma semana desse jeito, não aguenta mais. Nem um dia mais. Estica o braço e segura a mão da esposa, unhas pintadas numa cor nude, aliança grossa, aparador de pedras brilhantes, anel dourado no outro dedo. Inclina o corpo e perto do seu ouvido diz que não irão para o jantar com os outros pastores, irão para casa, seu corpo não aguenta, sua cabeça não aguenta, a voz rouca já quase não sai.

Encontra a calcinha vermelha rendada, veste e se olha dentro do banheiro cheio de vapor com cheiro de capim limão. Sorri. Passa a mão no espelho e vê aquele rosto naquela cabeça sem um fio de cabelo. Renata ainda não se reconhece. De um nécessaire preto, retira uma embalagem circular, escolhe um tom e com um pincel começa a apagar as olheiras grandes ao redor dos olhos pequenos. Depois, com o mesmo pincel, busca marcas, manchas, sinais pelo rosto e as persegue uma por uma. Arqueia as sobrancelhas e pinta por debaixo delas com uma cor e depois outra. Usa pincel, usa os dedos, os cílios crescem. Delineador, lápis e rímel. Limpa um excesso. Detalhista. Umedece a espuma em forma de gota, esfrega em um círculo gasto, espalha pelo rosto e começa a se reconhecer na pele lisa, uniforme. Pisca, arregala os olhos e o rosto já não é mais duro, o maxilar está relaxado. Sem abrir a boca, emite um som fino, falho, que vem do fundo da garganta, uma melodia que não dá para saber se é uma música ou algo que acabou de inventar. O Blush traz vida e esconde o cansaço. Um pouco, só um pouco de pó compacto. Rebel, Rouge in Love, 275, Hug Me, Marsala, Brave, hoje vai de Brave. Solta os lábios finos, vê-se um pouco dos dentes, e a boca vai se tornando mais rosada. Da bolsa retira uma saia de listras largas, veste, afasta-se um pouco da pia e na ponta dos pés olha o espelho para ver como lhe caiu bem.

A caminhonete avança no limite em que sabe que não perderá o controle, reduz consideravelmente apenas nos trechos monitorados por radar. Neto conhece bem aquele caminho. Quando para no sinal vermelho, a esposa está virada para a janela, ele vê seus cabelos longos castanhos com mechas loiras próximas às pontas. Não consegue ver seu rosto. Verde. Acelera, o pneu canta e a voz dela se mistura à música perguntando se precisa ir tão rápido assim. Uma nova história Deus tem pra mim, um novo tempo…

Tô cansado, só quero chegar em casa. Não quero brigar hoje, por favor.

Eu também não quero, Neto, mas não custava a gente ter ido no jantar. Eu também fui todos os dias pra igreja.

Eu tô morto de cansado, Elisa.

Eu sei bem por que você quer ir pra casa. Não é só cansaço, não. Eu sei.

Elisa respira forte, aumenta o volume e volta a olhar para a janela, Tudo aquilo que perdido foi, ouvirei de sua boca, te abençoarei, lembra que falta menos de um mês para completarem 10 anos de casados. Há 10 anos eram magros, apaixonados, pensavam em ter filhos, não sabia ser estéril. Era mais fácil, eram apenas dois.

A noite esfriou, o bico do peito endurecido confirma. Abre a porta do armário e escolhe uma blusa de lã que deixa o colo à mostra. Precisa de um salto confortável. Há quanto tempo não usa um salto? Senta na cama e de frente para o espelho, calça um scarpin preto brilhante. Se olha e se vê. Pela primeira vez naquela noite Renata se reconhece. O aperto no pé, espremendo os dedos, faz com que exista, que seja quem é, quem sempre foi.

Com a cabeça jogada para trás e os olhos fechados, Neto desabotoa os punhos da camisa, suspira fundo e permite que o corpo afunde mais no sofá. A mulher vai para o quarto. Ele fica ali parado e quando volta a se mexer é para desabotoar o restante da camisa. Depois a puxa para fora da calça, afrouxa o cinto e percebe que já não é o pastor Romualdo Neto que há 20 minutos despedia o povo com um microfone nas mãos. É, talvez, aquele que saiu pelos fundos enquanto todos se abraçavam no púlpito. Repassa um pensamento antigo, dizer tudo, dizer que não é o pastor Romualdo Neto, não apenas, é muito mais do que o pastor ou Neto. É quem é, desde que nasceu. Seria expulso… não, seria deixado de lado, dariam a seu pecado um peso maior do que o pecado de qualquer outro, seria exposto, lhe tirariam o pastorado, mas não o expulsariam da congregação. Sente-se triste, os olhos cheios e não sabe se é pelo modo que seria tratado ou porque nunca fará isso. Levanta, pega os sapatos nas mãos e caminha em direção ao quarto. Cruza com a mulher no corredor.

Vou tomar banho.

Tá. Vamos comer o quê?

Pede Pizza?

Peço.

Na cabeça de manequim, os cabelos de Renata são pretos, lisos, longos, bem cuidados. Retira a peruca com cuidado, abaixa a cabeça, encaixa-os e joga a cabeça pra trás. Com uma escova, arruma os fios que estão bagunçados. Joga a escova na cama, volta para o espelho e agora é ela, Renata, cada dia mais Renata. Ri, um riso descontrolado e alegre. Respira fundo, abre a porta, cruza o corredor, chega na sala e, com a voz aguda e rouca, pergunta, a pizza chegou?

--

--

Filipe Souza Leão
Discórdia

Nasci em Maceió, cresci no Recife, vivo em São Paulo e escrevo.