Por que zombamos dos viajantes do tempo?

Alex Xavier
Discórdia
Published in
4 min readOct 9, 2019

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Tenda do Discórdia no Corredor do Livro

Alguém viaja no tempo e, ao chegar, pergunta para o primeiro desavisado que encontra na rua “em que ano nós estamos?” Essa é uma cena costumeira em produções de ficção científica e sempre me perguntei o que faria se eu fosse abordado assim. Como consumidor de cultura pop e escritor, me via apto para identificar de cara um turista do passado ou do futuro. Eis que, no último fim de semana, estive nessa situação e me comportei exatamente como qualquer figurante de filme ou série do gênero. Fui dos que enxergam loucura em algo extraordinário.

O Coletivo Discórdia participou do Festival Mário de Andrade, em São Paulo, dentro do Corredor do Livro criado entre a Biblioteca Mário de Andrade e a Praça das Artes, passando pelo Theatro Municipal. Nossa tenda na Rua Xavier de Toledo recebeu um público bastante variado, não apenas os frequentadores costumeiros de eventos literários. Aproximaram-se também pessoas no caminho do trabalho para casa (ou vice-versa), descobrindo que barracas de livreiros desviaram o trajeto do ônibus de todo dia; comerciantes locais e ambulantes, tentando pegar onda no movimento; moradores de rua, já acostumados com a invisibilidade, às vezes, chamando a atenção de novos olhares.

Quando ainda montávamos nossas mesas, um rapaz com blusa rasgada se aproximou eufórico, só para contar sobre o livro autografado que ganhou de uma escritora de outra tenda. Nem deu tempo de oferecer algo também, pois logo ele seguiu espalhando a novidade para outros desconhecidos. Carregado de sacolas, um boliviano, que buscava a entrada do metrô escondida atrás da estrutura do evento, parou para ver nossa exposição e trocar umas ideias sobre Neruda, Llosa e García Márquez. Não consegui lembrar de nenhum autor da Bolívia e ele concluiu não haver nenhum. Dei um Google para contradizê-lo, mas era tarde. Sumiu.

Passei meia hora conversando com uma senhora, secretária aposentada, que pensou em comprar um livro usado de História ou Filosofia para dar ao filho. “Eu sou burra, mas ele não é”, soltou. Respondi que inteligente é quem sempre busca aprender algo novo — como ela, que ficou curiosa com uma festa literária na rua e interrompeu sua viagem de um canto ao outro da cidade. Teve muita gente levando nossos minilambes de brinde. Teve uma moça que quase leu um livro inteiro do mostruário, ali de pé mesmo. Teve até um senhor, de uns 80 anos, que roubou um adesivo à venda, talvez achando que fosse de graça — nem pensamos em detê-lo. E teve o viajante do tempo.

Ainda no sábado, um jovem chegou já falando, com várias linhas de raciocínio entrelaçadas. Parecia embriagado e temi que tombasse sobre nossas mesas. Mas queria apenas conversar sobre tudo enquanto mudava a disposição dos produtos, seguindo uma lógica própria, como um TOC. Em certo momento, comentou de filho(a)(s). Perguntei a idade e o papo seguiu assim:

– Uns 9… acho. O próximo, o que é?

– O próximo o quê?

– Próximo ano… 22? 23?

– Amigo, estamos em 2019.

– Isso! Então, ela tem seis anos.

Não resisti e ri. E depois que ele se foi, tão rápido quanto chegou — quem sabe, pegando outra linha temporal -, percebi o quanto minha reação foi idiota. Primeiro, supus que ele viesse do futuro, distante ou não. O cara não sabe em que ano estamos, mas pode ter muitas respostas. Quais os números da Mega-Sena da Virada? Trump vai destruir o planeta antes de sofrer um impeachment? Até quando teremos que aguentar Bolsonaro? Depois, pensei que ele deveria vir do passado. Aparentava ser novo para ser pai. Chegou de anos atrás e encontrou um país com ideias retrógradas, gente defendendo volta da ditadura, direitos do povão sendo retirados, censura à cultura, aparelhamento do Estado, políticas de segurança pública que encobrem um genocídio étnico e social, atraso em cima de atraso. E ainda descobriu que será pai e sua filha vai crescer nessa realidade.

Se eu fosse o viajante do tempo, também estaria embriagado ao meio-dia. E me parece bem plausível buscar refúgio em um evento cultural que ainda consegue ocupar as ruas e reunir tantas diferenças diante de um cenário absurdo como o atual. Torço agora para que o jovem turista, do futuro ou do passado, consiga chegar a 2022, mude o curso da História e dê um futuro melhor para a filha. Prometo não rir mais dele até lá.

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Conheça também meu livro O Teatro da Rotina, sobre absurdos do cotidiano.

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Alex Xavier
Discórdia

Jornalista e escritor. Mas queria ser escritor e jornalista. Autor dos livros O teatro da rotina e Não vai dar tempo (ambos da editora Patuá)