Sonhos com pé e cabeça

Alex Xavier
Discórdia
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8 min readFeb 14, 2023

Sonhos com pés e cabeça

Ciclo 1

A escuridão é a de sempre. Nada a temer. Mas os estatocistos não identificam o silêncio da toca. Percebo ondas sonoras repetidas, próximas demais. Devo mudar de cor? Por via das dúvidas, minhas glândulas intensificam a produção de tinta. Concentre-se. Passo os tentáculos ao redor. Na verdade, só consigo estender um deles. Textura estranha desses corais. Mais macio, lisinho… maleável até. Espera, não tem água aqui. Tudo seco. Não respiro. Preciso me revirar. Oxigênio. Luz, há uma luz. Calma, calminha. Onde estou? Não acredito que fiquei preso a uma rede de arrastão outra vez. Será? Acho que me lembraria. Um, dois, três, quatro tentáculos. E os outros quatro? Oh, não, me deceparam. Polvos se regeneram? Não lembro. Vai nascer de novo, não vai?

Puta merda, Sergio. O que você tem essa noite? Para quieto.

Caraca, tem um bípede bem do meu lado. Como assim? Uma fêmea, acho. Estátua, idiota! Nem um movimento. Talvez ela não me veja. Pronto, virou para lá. Deve achar que sou uma pedra. Vou me afastar. Devagarinho. Dis-cre-ta-men-te. Difícil se arrastar com apenas quatro membros. Rola, rola mais. Vai, vai. Arre, quero água. Acho que se eu alcançar esse declive… Opa.

Mas, Sergio… Você caiu da cama? Não acredito.

Meus olhos. Que luz é essa? A bípede está tentando me segurar. Ela me puxa e vejo meus tentáculos pela primeira vez. Sem ventosas. O que está acontecendo? Meu corpo estala inteiro. Mas sou invertebrado, como pode? Essa símia enlouqueceu? Não me ergue assim não. Vou despencar daqui. Não consigo me equilibrar nos meus… pés?

Acordo me debatendo e levanto areia. Sugo toda água que posso para absorver o oxigênio. Sinto o ambiente. Estou no mar, nos corais. Melhor revisar os tentáculos. Ufa, todos aqui. Inteirinhos. E nada de pés, por favor. Sou um polvo. Sim, um polvo. Imagina, eu, um mamífero primata. Ia odiar me mover de modo tão desengonçado, com a cabeça distante dos membros, um corpo nada translúcido e dependente de articulações limitadas. E aquela pelagem? Argh, que nojo. Foi só um pesadelo, seu doido. Acorda que é hora de garantir o café da manhã.

Ciclo 2

Gotas quentes escorrem pelo meu corpo. Não enxergo nada por causa da penumbra que me cerca. Mas, conforme a água desce pelo meu manto, me vejo como um ser compridão, sustentado por uma carcaça óssea envolta por tecidos musculares, dois membros superiores, dois inferiores. Estendo meu braço para frente e encontro uma superfície lisa e úmida. Quando passo a mão nela, surge do outro lado um bípede, macho, com muitos pelos escuros no topo da cabeça e no peito e uns mais avermelhados em volta da boca. Fico tão surpreso ao vê-lo quanto ele a mim.

Porra, Sergio. Precisa tomar um banho tão quente? Olha o fumacê nesse banheiro.

A fêmea. Já a vi antes. Reconheço o dourado da pelagem longa sobre a cabeça. Ela me joga um pano. Sempre vejo primatas com uns desses na areia e o esfrego no meu corpo esquálido. Então, sigo a bípede para fora da névoa e, de repente, estou na frente de uma série de peles dependuradas em uns arames. Já entendi. Devo escolher o disfarce, como faço no oceano, definindo cores e a opacidade que necessito. Sou bom em mimetizar o ambiente. Mas agora, em vez de me valer dos meus cromatóforos, preciso combinar aquelas epidermes artificiais e me cobrir com elas. Se ao menos soubesse para quê preciso delas. É para pegar uma presa desprevenida? Ou para me esconder de um predador? Talvez esteja na época desses primatas se acasalarem. Na dúvida, pego algumas peças, espalho no solo e tento entrar nelas como se fossem conchas.

Pirou de vez? Sai já de cima do meu baby-doll rosa.

Ela emite sons esganiçados e me puxa com força. Escolhi o rosa porque foquei em múltiplas funcionalidades. Com ele, posso me camuflar entre umas anêmonas, sei lá. E ainda é bem chamativo, caso a ideia seja atrair a fêmea. Bem, pela agressividade dela, posso descartar o acasalamento.

Ao abrir os olhos, descubro que minhas células rosearam e estou superexposto entre as rochas. Minha coloração se alterna de maneira randômica, várias vezes, até me dar conta do que tenho ao redor para refletir. Bem na hora. Uma moreia enorme se aproxima. Preciso entrar no personagem já. Sou essa pedra. Não, não. Algas, sou algas. Imita umas algas aí. Balanço, balanço. Só um pouquinho, com a corrente, nada demais. Não estou aqui, não olhe para mim, são só algas, alguinhas sem graça. Isso, vai embora, monstrengo. Era o que faltava ser comido por causa de um sonho besta.

Ciclo 3

Estou em movimento. Veloz, até demais. Alguma corrente? Não, nem estou no oceano. Tem uma superfície transparente em volta. É um aquário, eu acho. Mas em movimento. Lá fora, tudo passa rápido por mim. Umas árvores, torres altas, diversos bípedes. Cardumes gigantescos. Tem bípede até dentro de outros aquários, uns grandões, com um bando deles, tudo amontoado.

Sérgio, olha pra frente! Vai bater o carro, pelo amor de deus.

Putz, a fêmea está aqui também. Ela cutuca meu tentáculo, digo, braço. Os braços seguram uma ferramenta circular na minha frente. Para que serve esse treco? Gira para um lado, para o outro. Eita, o aquário seco se mexe junto. Sou eu que estou comandando isso? Que perigo. Calma, não deve ser muito difícil. Raciocina. Já desmontei uma engrenagem mais complexa quando escapei daquela embarcação. Membros superiores na roda. Cadê os inferiores? Hmm, o que isso faz?

Olha o sinal vermelho. Freia, freia!

Ah, saquei. Esse aqui para. Molezinha. O outro deve ser, o que?, para seguir em frente, claro. Pronto, seus mamadores primitivos. Já dominei seu mundo. E com quatro membros, hein? Se eu estivesse com meus oito, vocês iam ver só. Já teríamos chegado ao nosso destino, com certeza. Aliás, vamos para onde?

Acordo rindo. Na empolgação, até deixo escapar um pigmentozinho. Só então me ligo que faço movimentos circulares com dois dos tentáculos. Que bobo, engraçado mesmo. Atrás de comida, deixo a toca me achando. Agito meus membros para me locomover. Mas, dessa vez, finjo estar no aquário em movimento, imitando os primatas com quem sonhei. Até balanço um dos membros para o alto. Sai da frente, sua lagosta molenga!

Ciclo 4

Na minha frente, há um recipiente com um líquido preto. Parece a tinta que solto como defesa. Mas por que eu a colocaria aí? Em geral, solto na fuça do predador e caio fora. Mas, aqui nesse cubículo, uma secura só, rodeado por bípedes, não entendo do quê me protejo. Cada um deles também tem um vasinho com o pigmento escuro dentro. Seriam polvos como eu? Se bem que o mais roliço ali na ponta, sem pelos na cabeça, só embaixo do nariz, não tem tinta nenhuma. E todos nós estamos virados para ele e…

Sérgio, agora é com você. Qual o briefing do cliente?

Ele apontou para mim? Deve ser, todos me olham. Querem que eu diga algo? Como os primatas se comunicam? Polvos usam a coloração. Principalmente, ao alertar outros polvos sobre um perigo eminente. O tom certo significa, por exemplo, “corre, infeliz, lá vem tubarão”. Agora, porém, somos todos monocromáticos. Só o gordinho está cinza escuro. Como um tubarão. E se ele for um tubarão sonhando que é bípede?

Err, não entendi, Sérgio. O que quer dizer com “tubarão”?

Foge, galera! Pego meu recipiente, jogo a tinta no tubarão cinza e me escafedo daquele lugar. Cada um por si. A saída. Onde fica a saída? No caminho, trombo com um monte de primatas, em cubículos, um labirinto. Não posso parar. Desorientado, passo várias vezes em disparada pelo mesmo ponto. Fuja, fuja. Uma fenda se abre em um canto e salto dentro antes que ela se feche de novo.

Desperto alarmado. Um tubarão ataca minha toca e tenta me morder por entre as rochas. Socorro. Tinta na cara do desgraçado. Corre. Quer dizer, nada. Aproveito que ele fica atordoado e escapo. Torço para não me seguir. O fundo dos corais ainda está bem escuro. Conheço outros esconderijos, mas ser acordado dessa forma me desorienta. E se for mais do que um predador? Gastei toda a tinta de uma vez. Estou ferido? Um, dois, três… Oh, merda. Perdi a ponta de um dos tentáculos. Foi o sonho mais realista até agora.

Ciclo 5

Não durmo. Estou cansado, mas morro se fechar os olhos. O tubarão está por aí. Eu ferido, assustado. Qualquer movimento da maré atiça meus sentidos. E a fome? Meus suprimentos se foram com o ataque. Não consigo caçar enquanto sou caçado. Resta-me esperar, recuperar as forças, perder o medo de sair. Só tenho que ficar bem quietinho no meu canto. Algo vai aparecer. Quem sabe um camarãozinho desatento se aproxime do meu bico o suficiente. Ainda tenho sete tentáculos funcionais. Vou sair dessa. Só tenho que ficar de olhos arregalados. Não durma. Não durma. Não durma…

Esses crustáceos parecem saborosos. Dá vontade de esfregar os sensores neles. No caso, uma língua, que eu nem sabia que tinha. Mas a comida não está na minha frente de verdade. É apenas uma projeção dela, que um bípede me mostra em sua prancha. Bato o dedo duas vezes sobre aquela imagem e ele se retira. Estou em um ambiente amplo, com grupos pequenos de bípedes em volta. Muitos deles comem, o que me enche de esperança de comer em breve também.

Boa escolha.

Os frutos do mar daqui são ma-ra-vi-lho-sos.

Uma fêmea e um macho primatas estão comigo em uma grande tábua. Ela tem pelagem branca e grandes olhos falsos cobrindo os de verdade. O outro primata, despelado na cabeça e no rosto, apresenta desenhos bonitos nas mãos e no pescoço.

Você vai descobrir que somos uma agência moderna, muito mais aberta a inovações.

Sim, o outro emprego desperdiçava seu talento.

Cara, agora conta pra gente. Verdade que saiu de lá chutando o pau da barraca?

Só se fala nisso no mercado. Haha. Qual foi a gota d’água?

Levam bastante comida para a tábua do grupo ao lado. Uma fêmea se serve de um ensopado escuro, onde boiam alguns tentáculos. Eu me ergo e chego perto para analisar as ventosas. Lembro do meu próprio membro extirpado pelo tubarão e seguro a mão direita. Sem pedir, curvo-me sobre a refeição da bípede. Oito tentáculos. Apenas um deles sem a ponta. Pergunto-me se não seria eu mesmo ali sendo devorado.

Ciclo 6

Já não tenho certeza se sou um polvo sonhando ser um humano ou um humano sonhando ser um polvo. O que faz mais sentido? Cansaço. E o ferimento afetou minha percepção da realidade… Pense, imbecil. Você está apenas escondido na escuridão do oceano, sozinho. Ou, nesse momento, duas mãos cobrem seus olhos.

Pode abrir, amor. Surpresa!

Vejo pequenas chamas espalhadas pelo ambiente. Pétalas de flores cobrem o solo. A fêmea de pelagem dourada surge na minha frente, coberta com a mesma pele rosa que tentei usar em outro sonho. E não é que era mesmo época de acasalamento? Ela pula sobre mim, babando. Caímos na superfície lisa e macia onde já despertei uma vez. Tenho preocupações fora de hora. Seria sensato, nesse momento de mudança de emprego, ficar responsável por uma ninhada de 200 mil ovos? Praticamos sexo seguro ou corro o risco de ela me matar e me comer assim que for fecundada? Aconteceu com um primo, juro. Enquanto nos esfregamos, sinto um novo membro crescer em mim. Aleluia, polvos se regeneram.

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Alex Xavier
Discórdia

Jornalista e escritor. Mas queria ser escritor e jornalista. Autor dos livros O teatro da rotina e Não vai dar tempo (ambos da editora Patuá)