Red Dead Redemption 2

Acertos, erros e suas consequências na indústria

Jabez Asafe
DiscoSão
10 min readFeb 19, 2020

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Em janeiro de 2019 eu decidi comprar a sequência de um dos melhores jogos da geração passada, Red Dead Redemption 2, obviamente estava empolgado pois ouvia falar muito bem e gosto bastante do primeiro jogo. Ele chegou bem rápido e mais rápido que a entrega só a minha motivação e empolgação indo embora enquanto jogava, afinal ele é muito, muito, mas muito mais lento que o primeiro ou qualquer jogo da Rockstar e não demorou uns dias de jogatina para que largasse ele.

Passados alguns meses eu resolvi dar outra chance pra ele, e não clicou, eu só joguei um pouco a mais que na primeira vez e larguei de novo. Nesse exato momento e nos meses que viria a seguir eu estava aceitando que não iria termina-lo, o ritmo de jogo parecia desnecessariamente lento, ele tem mais processos para realizar as ações do que deveria ter, só de pensar nisso já me deixava cansado. Eu realmente já estava aceitando que esse jogo não ia me cativar, e tudo bem, afinal não existe um jogo para todo mundo e talvez esse só não seria o meu, mas no final de outubro do mesmo ano me veio um pensamento que me faria tentar mais uma vez:

Você pagou por esse jogo, tem que acabar.

E eu tentei e rapaz, essa é a melhor história e personagem que a Rockstar já fez e acho que vai demorar pra ser superada, não poderia ficar mais feliz de estar errado e vou começar mostrando um dos principais motivos de eu ter gostado tanto desse jogo, a sua gangue.

A Gangue

É interessante ver quais foram os motivos para levar a vida que levam e como era a vida deles antes da Gangue Van der Linde. Tudo isso dá um toque a mais de personalidade e humanidade, e logo você não os trata como um simples “boneco” ou “personagem” mas sim como um conhecido que tem um certo carinho. Lembra o nome, se interessa pelos seus gostos e pedidos que alguns deles fazem, e você faz pois quer descobrir mais histórias sobre eles. Eu gostei de cada um e de forma que foram evoluindo conforme as missões e condições da história ia passando.

Os personagens que eu mais gostava no começo não são exatamente os mesmos de quando acabei o jogo e tudo isso está muito bem justificado com a história. Desde o começo os que eu mais gostava eram o Charles, a Sadie e o Hosea e as vezes eu me pego vendo vídeo de umas missões com eles só pra lembrar de como são divertidos e humanos, e é um pouco triste jogar já sabendo do desfecho do primeiro jogo ou como ele começa, porque você já sabe quem está lá e quando você começa o segundo jogo você pensa “Onde ele estava no primeiro jogo? Será que morreu? Fugiu? Desapareceu?”. Ao longo dessa história você provavelmente vai ficar emocionado em alguns momentos, rir com as decisões ou diálogos e no final vai ficar contente com alguns desfechos e um pouco triste (ou muito) com outros. Todos esses personagens são muito reais e muito mais do que eu poderia imaginar, mas nenhum me surpreendeu tanto quanto o principal, Arthur Morgan.

Arthur Morgan

A primeira vista ele parece mais um personagem clichê da Rockstar onde é “super sarcástico” e é uma “crítica social” a humanidade de onde se passa o jogo, tudo isso com base em trailers e no histórico de personagens desenvolvidos pela empresa, e eu já estava cansado desse estilo de escrita e “crítica” a um bom tempo. As duas primeiras vezes que joguei só confirmaram a minhas expetativas que ele não seria muito bem desenvolvido pois só ficava sendo babaca sem motivo algum, bom, era isso que aparentava, mas ele não é.

Você percebe o quanto de personalidade ele tem conforme vai se aprofundando na história dele e na principal, no que gosta ou não de fazer, os motivos que o levaram a ter a vida que tem, com ele observa o mundo e as situações em que estão e isso nunca foi explorado nessa profundidade pela Rockstar. Um exemplo, na gangue tem um personagem que é um agiota e em determinado momento ele pede pra você fazer uma missão pra ele e como isso é um jogo e essa missão é obrigatória para prosseguir, você precisa fazer, e quando acaba a missão o Arthur solta um comentário sobre o que acabou de fazer e como se sentia, até aí qualquer jogo pode fazer, mas o comentário que ele faz e o que ele escreve no diário, principalmente isso, me fez NUNCA mais aceitar uma missão desse tipo se eu tivesse a escolha.

Se jogar Red Dead Redemption 2 sem ler o diário você vai perder uma GRANDE parte da personalidade do Arthur e do carisma que ele dá a esse mundo. Quando uma história acontece em uma das missões você tem uma perspectiva básica, só pra seguir o jogo, mas ao ler o diário percebe uma camada que faz sentindo e as vezes até muda a sua percepção sobre o ocorrido. E faz mais sentido isso não ser dito, porque ele esconde muitos sentimentos que fariam as pessoas vê-lo de maneira diferente e “isso não pode ser dito, pois homens não demonstram sentimentos” como um típico homem do velho oeste pensaria. Mais interessante ainda é ver com quem ele vai mostrar esses sentimentos que para muitos ele não demonstra, isso dá uma sensação de relacionamento verdadeiro, e mesmo com quem ele mostra os sentimentos ele não consegue ser sempre ele mesmo, talvez por querer ou por não saber como demonstrar e sabe somente com as palavras.

Como já disse, Arthur Morgan é de longe o melhor personagem feito pela Rockstar e acho que isso vai demorar pra ser superado e outro aspecto que vai demorar muito pra superado é o mundo aberto e tudo que você pode fazer nele.

O mundo aberto e seus detalhes

Em um jogo de mundo aberto é comum temos os personagens principais até que bem desenvolvidos e normalmente não é dado essa devida atenção ao mundo e ele acaba sendo só um local onde acontece o jogo, mas em Red Dead 2 não é assim. O mundo aberto e os NPC’s são um personagem assim como o Arthur e sua gangue e as vezes mais importantes do que pode parecer, muitas vezes o jogo vai te apresentar um local novo ou um NPC, da história ou não, dando um contexto de tudo que precisa ou até mais, fazendo disso um jogo com um ritmo mais lento de maneira proposital e te faz apreciar o mundo e tudo que vive nele.

Esse mundo é cheio de detalhes e processos, à primeira vista desnecessários, para se interagir. Cada animal que você caça precisa de uma técnica e arma diferente para obter o melhor resultado, em cada cidade os NPC’s vão agir de uma forma diferente e ter uma rotina durante o dia inteiro, tanto que se segui-los verá tudo que fazem, fora os easter eggs que ainda as pessoas devem demorar um tempo até descobrirem tudo que existe nesse mundo.

Red Dead Redemption 2 tem provavelmente o mundo aberto e NPC’s com mais detalhes e realista que existe, e deve demorar muito pra ser superado. Acho que só o próximo jogo da Rockstar vai passar, pois só ela tem a quantidade de dinheiro necessária, tempo e pessoas pra fazer isso. Claro, tirando a Epic ou qualquer outra empresa que a Tencent botar o seu dinheiro “infinito”, mas atualmente quem está disposto a fazer isso é somente a Rockstar.

Todo esse mundo aberto te dá muita liberdade nas missões secundárias e quando quer somente ir “passear”, mas uma pena que essa liberdade não é inclusa nem um pouco nas missões principais.

A missão principal

De longe o principal problema que tive com esse jogo foi a estrutura da missão principal, inclusive parei de jogar na primeira vez por conta disso. Ter o formato que tem chega a ser um insulto em um jogo com a quantidade de sistemas que ele tem e que se propõe a ser um mundo aberto no tamanho que é. As missões são literalmente siga a linha ou tal personagem SEM SAIR EM NADA DO OBJETIVO ou ele vai dar falha. Você pode estar seguindo o personagem e se dá conta que esqueceu a arma ou outra coisa no seu cavalo, mas não pode voltar se não da erro. Saiu um pouco da linha do que o jogo te obriga a seguir, falha na missão, as vezes até quando você segue o que o jogo está mandando ele da falha.

Ver como a história principal se desenvolve é bem intrigante e as vezes tocante, mas é bizarro ver essa diferença em um jogo com toda a liberdade em suas missões secundarias ou quando se navega no mundo, e das missões principais, onde nada disso se aplica. A Rockstar evoluiu muito no mundo aberto e tudo que vive nele, enquanto manteve a qualidade de como as missões principais funcionavam, pois parece que voltamos ao sistema de missões de GTA 3, que foi lançado 17 anos antes de Red Dead 2.

Esse problema na estrutura das missões é algo sério quando se trata de um jogo desse tamanho e nível de investimento, mas tudo isso pode ser relevado quando colocado ao lado de um problema muito mais real.

Crunch, o grande problema da indústria

O que é Crunch? É quando você é forçado seja de forma psicológica, moral ou imposta pelo empregador a trabalhar mais do que necessita. Em alguns casos (vários casos) o empregado ainda não recebe as horas extras e essa pratica ainda é vista com bons olhos por muita gente pois “dão o sangue pela empresa” e quem acaba não cedendo a isso é visto como um “parasita” ou alguém que “não dá a vida pra empresa”. Infelizmente essa pratica não é exclusiva da indústria de games, tanto que temos casos da área das animações, filmes, séries e do meio publicitário, mas vou focar aqui na área de jogos eletrônicos.

Essa pratica de trabalho sempre existiu na indústria e só porque sempre existiu que não significa que está certa, isso só começou a ser minimamente discutido em 2004 quando o designer Erin Hoffman expôs práticas do tipo na Electronic Arts. Ele acusava o emprego de estar destruindo sua vida amorosa. O caso ganhou relevância e gerou processos contra a EA, que precisou fazer acordos em valores milionários¹. E de uns 2 a 3 anos pra cá, o crunch começou a ser discutido mais seriamente e apontando pra uma futura sindicalização do meio onde protegeria os seus funcionários de possíveis abusos, e uns dos estopins pra isso foi Red Dead Redemption 2.

Em uma entrevista² Dan Houser disse que sua equipe chegou a trabalhar 100 horas por semana em várias ocasiões no Red Dead Redemption 2, ele que é o fundador da Rockstar Games e era o vice-presidente, pois anunciou a sua saída em fevereiro de 2020. Trabalhar 100 horas semanais em um jogo que tem 300.000 animações e 500.000 linhas de diálogo gravadas por 700 atores nos leva a pensar em algumas questões, por exemplo, será que todo esse trabalho a mais é realmente necessário? É necessário fazer a captura de movimento 1 pra 1 de cada apresentação ao vivo no teatro, de um braço sendo cortado ou de cada animação extremamente realista e detalhada? e etc.

Infelizmente essa pratica não é nova na Rockstar já que no desenvolvimento do Red Dead 1 os funcionários tiveram que trabalhar mais de 12 horas por dia e eles trabalhavam em fins de semana, sem ganhar horas extras e ainda podiam receber ações disciplinares caso recusassem fazer as horas extras, esse acontecimento ficou conhecido como o caso das cartas das esposas da Rockstar³, onde as esposas dos funcionários fizeram uma carta pedindo melhores condições de trabalho.

Ainda bem que todos esses casos estão sendo discutidos e levados a sério e não sendo tradado como se fosse uma coisa boa, afinal desenvolvedores de jogos são pessoas e assim como você e eu merecemos condições de trabalho decentes eles também merecem.

Red Dead Redemption 2 acerta em muitas coisas e erra outras, e pra algumas pessoas esses problemas com os funcionários podem afetar a percepção do jogo, eu consigo aproveitar o jogo e repudiar totalmente essas práticas da Rockstar, mas se você não conseguir está tudo bem. Eu comprei o jogo não só por gostar do jogo anterior, mas pra dar valor ao trabalho extra dos desenvolvedores, que foi o recomendado por eles e no final eles sempre vão preferir que comprem pra ajuda-los, mas também querem que esses temas sejam discutidos seriamente para uma possível mudança de cultura das empresas.

Referências

¹ START Explica: o que é “crunch”?
² The Making of Rockstar Games’ Red Dead Redemption 2
³ “Rockstar Spouse” accuses dev of pushing its employees “to the brink”

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Jabez Asafe
DiscoSão

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