Como eu ganhei a guerra

Toinho Castro
Discotheque
Published in
4 min readJul 11, 2018

Sting​ e o The Smiths​ não sabem, e certamente nunca virão a saber, mas esses dois discos aí da foto estão conectados na minha memória dita afetiva por conta de uma guerra.

Em 14 de abril de 1986 eu estava caminhando pela avenida Conselheiro Aguiar, em Boa Viagem, no Recife, quando da calçada do outro lado da avenida uma amiga minha, Susanne, gritou pra mim que a Terceira Guerra Mundial, sim, ela mesma, havia começado! Ali do outro lado da rua ao sol matinal do Recife, com sua brancura, cabelos muito loiros e olhos bem azuis, ela parecia uma lâmpada, uma aparição anunciando o fim dos tempos.

Olhei entre atônito e confuso em sua direção e ela completou: — Os EUA bombardearam a Líbia!

Trocamos essa informação bombástica, literalmente, enquanto caminhávamos em direção oposta, em lados opostos de uma avenida. Fomos assim deixando, nas nossas passadas rápidas, um ao outro para trás. Enquanto a violência de um bombardeio sacudia o mundo, eu seguia meu fluxo natural, prosaicamente, para comprar discos numa lojinha que ficava ali perto. Naqueles tempos eu não tinha dinheiro e se eu conseguia algum para comprar discos, posso dizer que isso valia uma dedicação que não era uma guerra que iria deter.

Chegando na loja, entre os muitos discos, dos quais eu só poderia comprar um, estava o The dream of the blue turtles, que era o primeiro disco solo do Sting, recém lançado. Levei a bolacha para escutar na cabine (pois é, tinha uma cabine, na verdade duas, para ouvir os discos em sossego) e passando faixa por faixa esbarrei numa música chamada Russians, que versava sobre a possibilidade de uma guerra nuclear, apelando pelo amor às crianças para que isso pudesse ser evitado. Tudo sob um tema soturno de Sergei Prokofiev.

Mister Reagan says, “We will protect you.”
I don’t subscribe to this point of view.
Believe me when I say to you,
I hope the Russians love their children too

À beira de uma guerra nuclear como aparentemente estávamos, não me senti muito animado a levar pra casa um disco com aquela marcha soturna soturna, que ainda citava o brinquedo de Oppenheimer. O disco do Sting para para outra ocasião, apesar da bela Love is the seventh wave e do hit If you love sombody set them free, que só aprendi a amar tempos depois.

Então, de volta às prateleiras, esbarrei na capa azul do Hatful of hollow, do Smiths, também recém lançado no Brasil. Os versos tristes e irônicos de Morrissey pareceram mais adequados àquele jovem perdido numa cidade costeira que eles haviam esquecido de bombardear (é o verso de Everyday is like sunday, do primeiro disco solo de Morrissey, que surgiria muito depois, e que diz bem como eu me sentia no Recife naqueles anos).

Deixei meu parco dinheirinho na loja, com o vendedor gente boa e levei pra casa o disco azul do Smiths. Os russos de Sting, encarando o fim do mundo, ficaram para trás, como acabou ficando para trás a terceira grande guerra e o apocalipse nuclear que o bombardeio da Líbia pelos aviões americanos havia nos prometido naquela madrugada, sem sucesso. Taí uma coisa que sempre me decepciona, o fim do mundo.

Em casa tranquei-me no quarto, como de costume, para apreciar a nova bolacha. Heaven knows i’m a miserable now, Reel around the fountain e This night has opened my eyes iluminaram minha vida; o mundo podia até acabar numa fucking guerra que eu estaria cantando Please, please, please let me get what I want à beira do canal do mangue que passava lá perto de casa, esperando o fim chegar. Esse disco mudou minha vida, né?!

Nunca esquecerei a versão do Dream Academy, na sequência do museu em Curtindo a vida adoidado (Péssimo nome em português para o clássico do grande John Hughes, Ferris Bueller’s Day Off. Hughes havia nos brindado ainda com outro clássico dos anos 8o, The Breakfast Club, ou O clube dos cinco.

Eventualmente acabei comprando o disco do Sting. Russians, apesar de há muito dissipado o pesadelo, ainda me assombra, como se eu voltasse no tempo àquela manhã de abril tão distante. Esses dois discos são também essa lembrança de Susanne; sem ela na equação eu teria comprado o disco de Sting. Será? Jamais saberemos.

Hoje esses discos estão com o jovem amigo, Pedro Siqueira​, para quem doei minha coleção de vinis. Os dois discos da foto que ilustra este texto foram comprados recentemente, aqui no Rio de Janeiro, em tardes prosaicas, sem grandes histórias. Mas é uma alegria tê-los aqui comigo, certamente. A alegria de um reencontro. Graças aos CDs e ao mundo digital nunca deixei de escutá-los nesses anos em que fiquei longe da minha coleção de discos (que ficou no Recife quando vim morar no Rio, 21 anos atrás), mas ter novamente esses dois long plays de 33 1/3 nas mãos… Please, please, please let me get what I want.

E foi assim que eu ganhei a guerra.

PS. Olhando as capas lado a lado vê-se entre elas uma semelhança entre elas. tons de azul, no caso do disco do Sting um azul profundo. As fotos em preto e branco, os nomes dos dois artistas bem destacados na parte superior… eram os discos daquele dia.

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