Rua da Matriz, nº 97

Toinho Castro
Discotheque
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3 min readJul 11, 2018

Li rapidamente hoje, em meio ao caos dos posts do Facebook, que um ou dois velhos casarões haviam desabado, tristemente ferindo moradores, no centro do Recife, a cidade onde cresci e vivi parte da minha vida adulta. Isso me teria passado como mais um episódio da novela de uma cidade abandonada, com seus históricos sobrados caindo aos pedaços sobre seus habitantes desprotegidos de tudo, não fosse pelo alerta de um jovem amigo, o Pedro Siqueira.

Disse-me Pedro que o sobrado que desabou por cima de outro sobrado era o nº 97 da rua da Matriz.

Eu pegava o ônibus, Jordão Alto ou Jordão Baixo, na Imbiribeira e seguia rumo ao centro da cidade. Atravessava o bairro de Afogados e seguia pela avenida Sul, um caminho desolado, margeado de um lado pelo muro que a separava dos trilhos da Rede Ferroviária Federal e do outro por uma sequência de ruínas e galpões semi-abandonados. O fim da jornada era na avenida Dantas Barreto, uma abominação que foi cortada em meio a um bairro fervilhante, derrubando cerca de 400 casarões, eliminando 11 ruas e uma igreja tombada pelo patrimônio histórico. Ali, nesse cenário de terror urbano, ficava o terminal do meu ônibus.

Dali eu cruzava a pé o que restava do bairro de Santo Antônio, passava pela rua Nova, cruzava em seguida a ponte Duarte Coelho, com seus ferros trançados, para adentrar a rua da Imperatriz e percorrê-la até o seu final, na igreja Matriz da Boa Vista, que fica na esquina com a rua da Matriz, onde eu, finalmente, chegava ao nº 97.

Foto do acervo de Levi Cerqueira.

Narrei assim esse percurso, que eu o perseguia em certos sábados auspiciosos, em tom de peregrinação, porque era mais ou menos disso que se tratava. O fim dessa peregrinação era a casa de Humberto.

Humberto era uma espécie de criatura mitológica, uma esfinge rock’n’roll, deslocada no tempo e no espaço. Assim me parecia, naqueles anos, e assim ainda me parece, na memória. No sobrado nº 97, que desabou, lá nos fundos, se abria uma espécie de quintal onde habitava uma microcomunidade, meio hippie, meio estranha. E o que havia lá, afinal, que nos atraía? A resposta é simples, o maná da juventude: discos.

Humberto vendia discos usados (e iogurte), e com isso alimentou toda uma geração de jovens recifenses que ali, no nº 97, aprendeu a amar o rock’n’roll em todas os seus matizes. Filhos do Metal, do Progressivo, das estranhezas inclassificáveis, passaram pelos portais da casa de Humberto. Era ponto de encontro, rota de fuga, cruzamento de linhas e bate-papos com raridades nas mãos. Ali a gente podia conversar, comprar e trocar, além de receber a sabedoria de Humberto. Quem passou por lá sabe. Quem passou por lá não esquece.

Aquele sobrado velho é tombado para nós, um patrimônio histórico-cultural, centro de um sistema nervoso que até hoje espalha e cultua o rock’n’roll pela cidade. Humberto, um cara que influenciou a formação musical e pessoal de gente que tá aí hoje, fazendo música, movimentando os toca-discos, botando gente pra dançar uma noite inteira. Salve, Humberto, que já se foi, alguns anos atrás, antes do seu sobrado, sem ser notado pela pobre mídia.

O nº 97 da rua da Matriz é um marco obscuro. Autoridades, o governo, a Unesco, não sabem da sua existência ou do seu valor. Não receberá honrarias ou certificados, nem haverá uma placa de bronze com a inscrição: Aqui viveu Humberto

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