Algumas pessoas odeiam surpresas. Entendo o porquê. Um assalto, por exemplo, é sempre uma surpresa. Ninguém diz “vamos ali rapidinho, tem um assalto agendado agora às 14h”. Pisar na merda é sempre uma surpresa. E as boas, como a do Kinder Ovo, não são surpresa coisíssima nenhuma. Está dizendo ali na embalagem que tem brinquedo dentro. Surpresa mesmo seria encontrar uma gema crua.
Uma das coisas mais incompreensíveis pra mim é o casamento surpresa. Sim, isso existe e já aconteceu com um casal de conhecidos, que foram emboscados em uma cerimônia com padre, alianças, a família toda, sem nenhum dos “““noivos””” terem conhecimento (eles foram finíssimos, ficaram na festa e disseram que fariam aquilo se e quando escolhessem, falou, valeu). Imagina a cabeça de alguém que resolve tomar uma decisão dessa no seu lugar.
E se o ser humano acha que tudo bem decidir a hora de outra pessoa casar, que outras surpresas ela pode querer fazer?
Mudança surpresa
Você chega em casa. Os amigos não estão escondidos atrás dos móveis ao gritar “surpresa!”. Não há móveis. Você é recebido pelo novo locatário do seu apartamento que te abraça e pergunta se pode ficar com a sua chopeira, única posse sua ainda no local. Meio aturdido, você concorda. Depois da festa, você é deixado bêbado com um molho de chaves na porta da sua nova casa com um travesseiro e uma faca para abrir caixas. Você não entende de primeira porque há um cheiro de linguiça no ar quando você abre as janelas. Viva! Agora você mora em cima de uma padaria no Bexiga.
Vasectomia surpresa
O Ronaldo disse que queria sua companhia na consulta. Apoio moral, brother. A secretária da médica quase arruína tudo quando chama o seu nome e não o dele, mas acaba passando batido. Você começa a desconfiar um pouco quando dá de cara com sua mulher, sua mãe, seus 5 filhos e uma faixa onde está escrito FELIZ VASECTOMIA. Ronaldo tranca a porta. Você se lembra de quando seu caçula vomitou no aquário de peixes raros de Ronaldo, desequilibrando a delicada água alcalina e matando 20 mil reais em fauna do Pacífico — e se arrepende por não ter arcado com o prejuízo. É mentira quando dizem que não vai doer nada, mas pelo menos no fim você ganha um pirulito.
Emprego surpresa
Heitor está sentado em seu cubículo. Você tenta questioná-lo mas ele está ouvindo música muito alto e balança o tronco para frente e para trás, de forma que você tem que mexer o braço no mesmo ritmo para poder, enfim, cutucá-lo. Ele diz que você é esperado no quinto andar, inclusive você está atrasado. Você pensa nas parcelas ainda não pagas do carro, da TV e da máquina de fazer pão. Já se enxerga como mais um cisco no olho da rua. Você encontra seu chefe e a Caterina do RH na porta do elevador e eles te levam para uma cadeirinha próxima ao picador de papéis. Há um balão e uma única fatia de bolo em uma embalagem de plástico, trazida da cantina. Surpresa, você não é mais analista de dados. Você agora é exterminador de dados, cargo que soa de fato muito melhor, mas consiste em passar oito horas ao dia transformando folhas de papel impresso em serpentina. Você lembra delicadamente a Caterina que é hemofílico e cada pequeno corte do papel em suas mãos pode resultar em desagradável hemorragia. Ela logo o informa que a vaga vem com um upgrade no plano de saúde, não é maravilhoso?
Plástica surpresa
O seu marido te leva no rodízio, pede até vinho e sobremesa. Você se sente pesada e sonolenta e vai logo dormir. Na manhã seguinte, acorda com cócegas na barriga. Demora um pouco pra abrir os olhos e ver o médico que desenha linhas em você com canetinha. É só pra tirar a gordurinha localizada. Sua irmã está ali e sugere aproveitar a anestesia para colocar 2oml de colágeno nas maçãs do rosto. Sua mãe pergunta porque não um pouco de preenchimento labial. Talvez subir os peitos um pouquinho, sugere o vizinho do quarto andar. A anestesia te engole inteira e todos estão lá com balões e confetes no dia em que enfim tiram as bandagens: o marido, a irmã, a mãe, o vizinho e uma mulher que parece ter sobrevivido por pouco a uma briga de rua com um orangotango. Ah. Esse é o espelho.
Doação de órgão surpresa
Lembra aquela história dos palhaços que roubavam órgãos? Então.
Velório surpresa
Wilma te chamou para um jantar e por alguma coincidência todos vieram de preto. O arranjo floral, em forma de guirlanda, é muito bonito, mas grande demais, talvez por isso esteja num cavalete só para ele e não sobre a mesa. Você sorri ao ver que Wilma tem um retrato seu de meio metro na mesa lateral, perto da caixa comprida de madeira, mas ela te tira dali e te guia para o banquete. Você está em todas as histórias que são contadas. Inclusive as do padre na cabeceira da mesa, que você nem conhece e que garante que você era um bom filho, irmão e servo de deus. Wilma balança a cabeça. Túlio chora. Juntam as mãos e fazem uma oração em sua homenagem. Difícil lembrar de noite mais agradável. É bonito o som das taças de vinho se encontrando e você bebe tudo na urgência de um único gole. O resto é silêncio.
