Nem Exu dá conta

Alan de Sá
Disk Macumba
Published in
3 min readDec 27, 2021

— Anjo Kéllwerson, bom dia.

— Bom dia. Eu quero falar com Deus.

— Claro, claro. Todo mundo quer. Qual teu nome?

— Exu.

— Só um momento. Desculpe, não temos registro desse nome aqui, não.

— Como não tem?

— Não tendo, ué. Tem aqui, ó: Extebão, Exceletíssimo, Exaltaíde, mas nada de Exu.

— Isso é uma lista ou uma gramática de aramaico?

— O que você tem contra o aramaico?

— Nada, eu só quero falar com Deus.

— Tá, tá, aguarda um momentinho. Deus?

— Oi.

— Tem um tal de Exu querendo falar com o Senhor.

— Fala que eu não tô. Inventa uma desculpa.

— Mentir não é pecado, alfa e o ômega?

— Eu não estou mentindo, só transferindo a responsabilidade. É minha, agora é sua. Passa pra quem quiser, com Exu, eu não falo.

— Tudo bem. Seu Exu?

— Seu não, que eu sou mais novo que você.

— O Altíssimo está ocupado, fazendo coisas de… Altíssimo, sabe?

— E não tem ninguém que possa quebrar um galho aí não? Um santo, um desses cupidos de igreja, sei lá…

— Vou tentar com a chefia, só um momento. Redentor dos homens?

— Oi, Kéllwerson. Manda brasa.

— Um homem, chamado Exu, tá querendo falar com o senhor.

— Esse é caso antigo. Manda ele entrar.

— Não dá, Salvador dos Homens. Quarentena, lembra?

— Verdade, esqueci que a máquina do Apocalipse deu tela azul. Tá, eu atendo ele. É pelo Zoom?

— Não, telefone.

— Ótimo, odeio que me vejam. Ainda mais assim, com o cabelo todo cheio de frizz. Pode passar. Exu?

— Quem ressuscita sempre aparece, né não, Juninho?

— Mané Juninho, eu sou o filho de Deus.

— E o que é que tem a ver? Seguinte, eu preciso da sua ajuda.

— Minha?

— Sua.

— Pensei que vocês do candomblé conseguiam resolver tudo por aí embaixo.

— Rapaz, eu dou jeito em tudo, menos na Julieta.

— Julieta?

— A de Quixeramobim.

— Ah, sei qual é. Coitada, ela é tão boazinha…

— Boazinha contigo, que come vela o dia todo e fica morrendo e vivendo em toda missa.

— Assim tu me ofende, pô.

— O negócio é: ela passou pra macumba e eu preciso que você dê um jeito nela.

— Oxe, mata no peito e teile.

— Como é que tu quer que eu dê jeito em uma pessoa que vai pra gira pra tirar foto com pombagira, Jesus? Como é que eu coiso alguém que me faz despacho com frango Sadia temperado?

— Frango temperado?

— Frango temperado! Vê se pode? O pior não é nem nada: ela meteu a mão no jogo de búzios pra saber como é que era. Ela bateu, Jesus, bateu na cara de um Boiadeiro que tava com um facão na mão dançando. Eu não aguento mais essa mulher. Terreiro nenhum quer ela mais. Onde eu tô, ela vai. Parece encosto.

— Encosto é comigo.

— Então, por isso mesmo. Quando ela tava lá na quadrangular, não me dava trabalho. Foi tu inventar de mandar ela pra cá que me coisou foi todo.

— Eu só queria que ela tivesse livre arbítrio, ué.

— E tinha que ser logo comigo? Mandasse pra Buda. Ele é paciente, ficou anos escutando o Dalai Lama, chato pra caralho, e nunca reclamou. Mandasse, sei lá, pra Odin, que vive mendingando devoto com filme de super-herói. Mas logo eu?

— Exu, não é nada pessoal, tá? Mas não vai rolar. Entenda: tu é a única divindade que dá jeito até em pau nascido torto, eu tô aqui, com uma porrada de papeladas pra resolver, tendo que evitar uns quarenta fins do mundo simultâneos só em 2020, não tenho tempo pra ficar cuidando da Julieta.

— E eu tenho? Eu tô há meses sem comer da mão dela por causa daquela porcaria de frango temperado e tu quer que eu fique de babá?

— Tá, tá. Vamo pensar. Tem nenhum orixá livre não?

— Todo mundo com pauta cheia.

— Mitologia grega?

— Quer mesmo deixar ela na mão do Percy Jackson?

— Vai ser o jeito mandar ela pra Universal. Pelo menos lá, o Diabo é quem manda.

--

--

Alan de Sá
Disk Macumba

Journalist, writer, copywriter and co-creator of sertãopunk.