Backup

Jairo B. Filho
Dissociação
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6 min readJun 6, 2017

“Nós vamos te salvar, pai.”

O garoto permaneceu ao lado do leito, por todo o tempo. Manteve a mão sobre a de seu pai, na esperança de obter uma reação de sua parte, por menor que fosse.

Há dois anos ele mantinha essa esperança, sempre questionada pelos médicos que ali passavam. Até agora, eles tinham a razão, e isso o fez pensar sobre o que fazer para manter seu pai a salvo.

Apenas o abrir da porta o retirou de seus pensamentos, e costumes. Levantou-se para recepcionar aquele que convocou para o salvamento.

“Você deve ser o Lucas… certo?”

O rapaz assentiu em silêncio, apertando a mão do recém-chegado. Reparou, além de suas roupas simples, na maleta prateada e brilhante que o sujeito tinha nas mãos.

“Já vai fazer o processo?”

Ele largou a maleta em uma mesa próxima, se virando para trancar a porta do quarto. Sua postura fria e profissional devia dar confiança a Lucas; mas, por algum motivo, isso não acontecia.

“Pelo que você me disse no telefone, não temos muito tempo. Preciso que você assine esse termo.”

Retirou da maleta um contrato de serviço, um documento extenso e formal, sem identificação de firma.

“Você foi avisado de que um processo como este possui seus riscos. Preciso que você assine este documento, assumindo assim a responsabilidade por eles.”

Lucas passou os olhos pelo documento, identificando alguns pontos chave da descrição do processo: “perda integral de memória”, “corrupção de dados na transferência”, “perda irreparável de lembranças”, “morte cerebral do paciente”…

“Mas… tem riscos demais aqui. Não sei se posso concordar com isso…”

O sujeito não reagiu; apenas virou os olhos sobre o leito, observando o sono tranquilo do pai de Lucas.

“Eu entendo. Talvez, seja melhor deixá-lo em paz, esperando a morte chegar…”

As palavras dele pesaram sobre Lucas. Apesar dos riscos, ali havia uma chance maior de salvá-lo — maior que qualquer boa perspectiva que os médicos lhe deram, desde a internação.

Acima de tudo, queria seu pai de volta. E por isso, assinou os documentos sem pensar duas vezes.

Tudo estava em paz. Se via nos campos que abraçavam sua casa, em um dia perfumado de primavera.

Nem acreditava estar ali, já que precisou se desfazer da casa depois da morte de…

“Elisa…?”

Seus olhos não acreditavam no que via: a mulher que tanto amou, linda como sempre foi, estava junto dele, o abraçando e provando seu amor em um beijo.

Achou que isso nunca mais se repetiria, em sua vida cansada…

Logo atrás dela, um garotinho corria livre como os pássaros. Seus cabelos claros balançavam com o vento, e os braços permaneciam abertos, como se louvando o sol ou as belezas à sua volta.

“Lucas!”

Virou-se para abraçar as duas dádivas de sua vida, mas algo aconteceu. Uma nuvem negra se assomou no horizonte, engolindo todos na sua sombra…

Até que somente ele ficasse sozinho.

O ruído da máquina crescia ou diminuía, de acordo com as reações e reflexos do pai de Lucas. Diversos fios e eletrodos uniam ele a um notebook de última geração, que trabalhava dentro da maleta. O dono do aparelho mantinha seus olhos no monitor, analisando dados do processo com expressão de surpresa.

“A princípio, tudo tranquilo. Já estamos em 15% e não temos nenhuma resistência dele em transferir as memórias de seu pai.”

Lucas permanecia apreensivo, agora que estava ciente dos riscos. Tinha o contrato em suas mãos, e os olhos fixos na figura que antes fora seu pai.

Com o parecer médico acusando que seu estado vegetativo era irreversível, o rapaz acabou aderindo a uma técnica ilegal de backup psíquico; ao armazenar as memórias dele em uma PA, bastava obter um corpo mais jovem para que pudesse levar sua vida adiante.

Por mais perigoso que fosse, estava disposto a fazer isso por seu pai. A única pessoa que tinha na vida, e também o único sentido que via para continuar vivendo.

Um ruído mais alto e estridente acabou cortando seus pensamentos. Ou melhor, confirmando-os.

“O… o que está acontecendo?”

O profissional, já debruçado em seu aparelho, deu uma resposta breve — para não cortar sua concentração em resolver o problema.

“Há um sinal crescente de biofeedback bloqueando a transferencia, e isso pode corromper a PA se não tomarmos uma providência.”

A garganta de Lucas se apertou.

“Quer dizer que…”

O sujeito encarou seu contratante com um olhar lógico.

“Ele está resistindo ao processo.”

“Não!”

As memórias passavam velozmente por ele, logo sendo engolidas pela escuridão inexplicável. Aos poucos, suas memórias vão sumindo, se perdendo na sombra como se nunca tivessem acontecido.

“Não! Deixe minha vida em paz!”

Se agarrava às lembranças, tentando manter-se com as lembranças como se participasse de um cabo de guerra com o desconhecido. O prêmio seria sua vida — tudo que viveu e sentiu, e que agora lhe era tomado de assalto.

O pior de tudo era saber que estava perdendo essa disputa. E só as lembranças ruins permaneceram ali, como as brigas que teve com Elisa e Lucas.

E, mais recentemente, o acidente que o isolou do mundo…

“Não, por favor! Não leve minha vida!”

Com a crise convulsiva que acometia seu pai, Lucas estava assustado.

“O que está acontecendo, afinal?”

O sujeito contratado parecia nervoso, constantemente limpando o suor de sua testa com as mãos.

“Eu… não sei. A transferência está comprometida. Ele não quer ceder as lembranças para o disco, e isso pode matá-lo de vez!”

As palavras do profissional deixaram o garoto mais nervoso, a ponto dele se dirigir ao leito de seu pai, na tentativa de contê-lo.

“Por que, pai? Por que você resiste tanto?”

De tão concentrado, Lucas nem percebeu que o sujeito implantava um pendrive cinzento no seu aparelho, bem ao lado do disco de reprodução. Com alguns comandos no teclado, ele fez o velho se acalmar de súbito.

Lucas olhou para trás, já ciente da situação.

“O que você fez?”

Sem prestar atenção em Lucas, o sujeito respondeu:

“Precisei intervir com uma medida um pouco drástica, mas necessária para garantir a transf-”

Não conseguiu terminar a frase, pois o rapaz o agarrava pelas costas, apertando seu pescoço.

“Quero que interrompa o processo, agora!”

Já estava no limite de suas forças, e não podia mais evitar o furto de suas memórias. A cada perda, sentia-se mais e mais fraco, entregue ao fim derradeiro.

“Então, isso é morrer?”

Sentia vontade de chorar, tamanha era a dor de perder fragmentos de sua vida, um a um. Não lembrava mais do próprio rosto, ou de seu nome — e nada pode doer mais que não ter uma vida de que se orgulhar.

Foi nesse momento que a situação se reverteu. Um turbilhão de flashes e momentos voltou a preencher os espaços vazios de sua mente, em um fluxo intenso e inesperado.

Tudo voltou a ser tão real, a ponto de revivenciar cada momento: aromas, toques, visões, palavras… algo muito forte, talvez demais para sua mente assimilar.

Mesmo assim, ele abraçava tudo isso, indiferente às consequências. Queria ter apenas sua vida de volta, e a chance de ver Lucas uma última vez…

Com o processo de transferência revertido, Lucas pôde presenciar um milagre: seu pai estava recobrando a consciência, depois de tanto tempo em coma.

“Impressionante!”

Até mesmo o responsável pelo backup não acreditava no que estava vendo.

“L-Lucas… Lucas…”

O garoto, com lágrimas nos olhos, foi de encontro a seu pai. Pegou em sua mão, agora sentindo-a envolver seus dedos como há muito não sentia.

“Estou aqui, pai. Estou aqui ao seu lado.”

Os olhos dele estavam semiabertos, revelando um brilho opaco de satisfação. Algo dizia ao garoto que não iria durar muito.

“Eu… só queria te ver, antes de… ir.”

As mãos de Lucas apertaram sobre a de seu pai.

“Não diga isso! Ainda vamos viver muito… você não pode me deixar!”

Ao ver as lágrimas de seu filho, ele também chorou. Os sinais vitais ficavam cada vez mais intensos no monitor.

“Eu… e sua mãe… estaremos sempre ao seu… lado.”

Ao fim destas palavras, fechou os olhos. O som do monitor era constante, e não demoraria muito para que o socorro viesse até o quarto.

Lucas não chorava mais. Sentia-se feliz por ter falado com ele, antes de sua morte. Colocou a mão dele sobre o peito, desejando a ele um bom descanso, e se virou para o profissional — que, a essa altura, já tinha recolhido seus instrumentos e se preparava para sair.

“Olha, eu… sinto muito. Não irei cobrar a outra parte de nosso acordo, em respeito ao seu pai.”

Lucas não disse nada, contudo; apenas o abraçou, agradecido por essa dádiva que ninguém mais lhe ofereceu.

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Jairo B. Filho
Dissociação

Game Designer independente, fundador do selo Jogos à Lá Carte e entusiasta de pesquisas e boas conversas.