Cartas Marcadas

Jairo B. Filho
Dissociação
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4 min readJan 24, 2018

Chegou em casa, finalmente, depois de passar por mais um dia de trabalho árduo.

Suspirou, antes de entrar.

Oh, você chegou cedo, querido!

Ignorou o beijo da esposa como se nada fosse. Apenas mais um ato mecânico, como tantos outros em sua vida.

Mal notou as crianças brincando na sala, ou televisor trazendo mais notícias ruins sobre o mundo. Elas também pareciam despreocupadas, ao ponto de ignorar sua apatia. Imersas em seu próprio mundinho de fantasia.

Não demore muito, Frank. O jantar logo será servido!

Sem responder, ainda mecanizado pela vida cotidiana, se despiu e foi para o chuveiro. Em meio aos vapores do chuveiro, que deveria relaxá-lo, veio o pesar. Começava pelas mãos enrugadas, que logo tocavam seu rosto e desciam, circundando seu abdome saliente.

A decepção escorria pelo seu rosto junto com a água. Dicreta e sutilmente quando todos não estavam olhando.

Desceu até a sala de jantar, com o passo arrastado e o pijama azul-bebê de todos os dias, em sua luta para manter o ânimo perante sua família. Sorrindo a cada porção do rosbife habitual, e mantendo a postura para não engasgar no próprio choro.

Enfim, nada de novo ou libertador para o pobre Frank. Pelo menos, não por enquanto…

Sua vida só começava quando as crianças, e a sempre atenciosa Darla, iam dormir.

Mais uma vez, usara a desculpa do homeoffice para se safar. Não acreditava que seria tão tola em crer nisso, mas mesmo assim tentou. E deu certo.

“Ainda bem que os emplastros ansiolíticos fazem efeito rápido”, pensou.

Em seguida, fez a conexão entre a prótese em sua têmpora direita com seu computador, acessando assim a proibida rede Neurolink. Algo que, se visto por alguém, certamente resultaria em cadeia — e, muito provavelmente, em torturas intermináveis por alguma suposta ligação com os “opositores do sistema”…

Para Frank, contudo, só havia um interesse: mesas de pôquer.

Há muito tempo que o jogo tinha se tornado transgressão em sua cultura, e o governo logo tratou de banir, sob a bandeira de “proteger a família e os bons costumes”.

Para Frank, e seus amigos entediados do escritório, era um argumento furado — ainda mais vindo de quem desvia mundos e fundos do dinheiro público. Tirado de seu trabalho suado, e monótono.

Mas, não era hora de pensar nisso; e sim, na “renda extra” e divertida que gerava nessas mesas virtuais, noite após noite. Um bom meio de garantir o conforto para Darla, e seus filhos.

Poderia ser o seu ganha-pão, contudo, se não fosse tão arriscado…

Era comum ver alguns colegas de repartição, que já conhecia não apenas pelos nicknames adotados no ambiente virtual, mas também pelo fato de todos eles evitarem participar de suas mesas. É, o velho Frankie já tinha “pelado” alguns deles, e sua reputação nas mesas de carteado o precedia.

Ou, na pior das hipóteses, atraía sempre algum tolo querendo desafiá-lo.

Foi o que aconteceu, há pouco mais de quinze minutos de encerrar o seu “turno” — e com uma soma considerável reunida naquela noite.

De tão confiante, Frank sentiu que não podia deixar o pobre coitado sem atender suas expectativas… ou destruí-las.

Aceitou o convite do recém-chegado para uma mesa, junto com outros quatro usuários. Mais uma vez, nenhum conhecido.

Quando todos colocavam seus montantes nos contadores digitais da mesa, uma voz fantasmagórica ecoou pela mente dos jogadores.

Vamos apostar algo que valha a pena, amigos. Que tal… a vida de vocês?

A resposta veio prontamente de três dos quatro outros membros da mesa, desconectando prontamente.

Isso devia servir de aviso para Frank, uma advertência para o pior. Mas, tolo como era em suas noites de vitória, não se deixou levar pela covardia (ou seria cautela?) dos outros participantes.

Afinal, ainda tinha outro participante na mesa.

Que saiu dois minutos depois de tomar a sua decisão.

Estavam apenas Frank, e o desafiante misterioso. Ainda bem que ele não podia perceber a tensão que acontecia de um dos lados da conexão.

Você aceita, Frank?

“Quê?”

Ele não podia acreditar nisso. Em todo esse tempo de jogatina, ninguém podia saber seu verdadeiro nome. Com quem diabos estava lidando?

O tempo está passando, Frankie. Você aceita o desafio?

Agora que estava exposto, Frank se viu sem alternativa. Não sabia onde estava se metendo, mas não se sentia confortável em sair sem dar uma lição a esse sujeito. Seja ele quem for.

Aceito!

Mesmo estando em um ambiente virtual, ele podia sentir os olhos dos outros jogadores em sua volta, como se o cercassem. Estava nervoso, e isso era um péssimo sinal.

As cartas são dadas pelo crupiê virtual, a a falta de indícios aumenta sua tensão. Mal pôde ver as cartas em sua mão, pois estava concentrado em saber quem seria o desgraçado que estaria fazendo aquele jogo sujo…

Pronto para o jogo, Frank?

Indo para o tudo-ou-nada, ele respondeu ao desafio. Afinal, a sorte estava com ele naquela noite.

A desagradável sensação do sol bater em seu rosto tirou Frank do sono. Com a luz, logo veio o cheiro de lixo e de comida barata.

Olhou em volta, e não acreditou no que tinha acontecido. As lembranças do jogo vieram numa pancada súbita — tão intensa quanto um cruzado de direita.

Agora que estava ciente do que aconteceu, precisava voltar para casa. Bateu a poeira naquele terno vagabundo, de segunda mão, que vestia. Percebeu as mãos ossudas, que não eram suas, mas não se deixou abalar.

Pelo menos, não até sair do beco e se deparar consigo próprio no outro lado da rua, caminhando de mãos dadas com a sua esposa.

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Jairo B. Filho
Dissociação

Game Designer independente, fundador do selo Jogos à Lá Carte e entusiasta de pesquisas e boas conversas.