Cyberia

Jairo B. Filho
Dissociação
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7 min readJun 7, 2017

O abrir da porta lhe trazia conforto, depois de um dia tão difícil.

De volta ao seu “ambiente natural”, Antonio caminhava por entre os cômodos, ignorando detalhes que normalmente apreciaria em sua passagem, como sua coleção de figuras de ação ou sua prateleira de jogos digitais.

O corpo estava pesado, tanto de chuva quanto de mágoas. Os olhos, encovados, não acreditavam no que tinha presenciado, ou no que tinha acontecido até então.

Voltara do enterro de Jessica, a moça que considerava seu grande amor.

Ao chegar em seu quarto, deixou-se cair por completo na cama, duro como uma tábua. Por mais que sentisse a vontade, seus olhos não choravam mais. Passou as duas últimas noites nessa condição, colocando para fora toda sua dor…

“Suicídio! Isso é inacreditável!”

Em um reflexo incontido, seus braços começaram a bater forte no colchão — talvez descontando os resquícios de raiva ainda guardados em seu corpo.

Cansaço, dor, mágoa, paixão… tudo estava misturado, e nada fazia sentido. A garota de sua vida se foi, do dia pra noite. Não tinha mais a chance de contar para ela o que sentia, ou de lhe fazer a surpresa que tinha planejado para seu aniversário, daqui a duas semanas.

Estava tudo perdido.

Até que seu telefone vibrasse.

Uma. Duas. Três. Várias vezes.

No início, ele ignorou; não queria falar com ninguém, ou ver alguma outra pessoa, até que seu luto passasse (se é que ele passaria algum dia). Mas a insistência era grande, assim como seu ímpeto para descarregar ofensas ao maldito persistente.

Conteve a ira somente quando viu de quem era a ligação.

“Jessica”.

Só podia ser alguma brincadeira, de muito mal gosto. Segurou o impulso de jogar o celular pela janela quando este vibrou novamente.

“Quem é o desgraçado que está brincando comigo dessa forma?”

A voz suave, apesar de eletrônica, era inconfundível.

“Nossa, Tony. Por que está tão bravo?”

Não pode ser… Jessica?

“É… é você? Como…?”

A estática comprometia, de leve, a qualidade da ligação.

“Sim, seu bobo. Sou eu, Jessica. Preciso que você me encontre, o quanto antes.”

O rosto estava novamente umidecido por lágrimas. Desta vez, de incredulidade.

“O…onde te encontro? Me diga onde, e irei correndo até você agora mesmo!”

Do outro lado da linha, o sinal parecia morrer. Apenas resquícios da voz permaneceram, antes da ligação cair de fato.

“Cy…be…ria.”

O pôr-do-sol era intenso, depois da chuva que acometeu boa parte do dia; preencheu as sombras e vielas com luz avermelhada e intensa. Antonio caminhava por entre as sombras, confuso; não podia ter sido ela, de verdade… ou será que podia?

“Não pense isso, seu tolo. Você a viu morrer. Ela o fez na sua frente!”

As cenas em que a viu, jogada na rua, doeram em seu peito. Foi ele quem buscou, desesperadamente, por socorro; e o insucesso em salvá-la pesou ainda mais em seu peito.

Os pensamentos foram rapidamente removidos de sua mente quando se deparou com o endereço dado por Jessica: um lugar bem arrumado, e destoante da vizinhança.

A julgar pela fachada, uma casa noturna. O letreiro deixava bem claro o destino: “Cyberia”.

Aproximou-se da entrada, percebendo que a casa estava funcionando há pouco tempo. O ambiente, ainda vazio, se assemelhava muito a um café — refinado, acolhedor e reservado. Notou que algumas mesas tinham seu próprio notebook instalado, e sentou-se numa delas para saciar sua curiosidade.

Fora prontamente atendido por uma gentil garçonete de olhos grandes, que lhe trouxe um chai latte quentinho e saboroso. No aparelho, o menu principal trazia o título “Acompanhantes”, livremente acessível.

Intrigado, Antonio começou a pesquisar neste tópico, e se deparou com o “perfil” de diversas pessoas: entre homens e mulheres, de idade bem semelhante à sua.

Um deles era Jessica.

“Como…?”

A curiosidade mórbida guiou sua mão pelo touchscreen, a acionando para ver como funciona esse processo. Acionando-a, precisou esperar por alguns minutos até que uma reprodução digital do rosto dela emergisse na tela.

O brilho de seus olhos era presente, mesmo por entre os pixels que compunham seu rosto.

“Estava te esperando, Tony.”

A voz, agora mais nítida, era realmente de Jessica. Antonio esmoreceu por completo, principalmente pela falta que sentia dela.

“Jessica… por que?”

As mãos tentavam tocar seu rosto, limitadas pelo monitor. Insistia, mesmo sabendo que não era mais possível.

“Eu… acabei descobrindo algo aqui, nesta mesa. Encontrei algo que a vida não podia me dar, sabe…?

Nada era claro o bastante para ele. Como isso poderia ter acontecido? Como saber que, na verdade, tudo que aquele simulacro dizia era real?

“Você não está acreditando, né? Eu sei, é confuso. Também passei por isso até experimentar a sensação, o desprendimento… talvez você devesse fazer o mesmo.”

Com os olhos, Jessica apontou uma extensão do aparelho: um eletrodo ainda intacto, associado ao computador por um grosso deixe de fios.

“Deixe-se experimentar, Tony. Eu guio você. Pegue o eletrodo, e coloque-o em sua nuca…”

Com relutância, seguiu as recomendações dela. Retirou a etiqueta do trodo, sentindo seu cheiro artificial, e a colou na base do crânio, sob seus cabelos escuros.

Deixou que Jessica fizesse o resto.

Inicialmente, a sensação foi de nudez. Antonio sentiu-se desligado do mundo, isolado em seu próprio vácuo, sem som ou luz.

De repente, veio o abraço. Algo intenso, interno, além do carnal. Tão verdadeiro, e sincero, que nem mesmo suas melhores lembranças podiam lhe dar tamanho conforto…

“Você vai ficar bem, Tony. Eu estou aqui com você.”

A voz de Jessica tocava seu coração, aquecendo-o de imediato. Não precisava dizer nada; sentia-se aberto a ela, entregando tudo que pensava e sentia a respeito dela.

Depois que a experiência acabou, voltou à realidade. Sentia dor até no ato de respirar, já que o corpo não correspondia a nenhum estímulo próximo daquela sensação de liberdade.

Saiu da Cyberia aturdido, com as palavras de Jessica gravadas em sua mente:

“Você vai voltar, Tony. Estarei aqui lhe esperando, meu amor.”

E assim foi, pelos dias que se seguiram. Deixou a vida mundana para trás — seu trabalho, posses, responsabilidades e relações — para ficar com ela o máximo possível. Passou muito de seu tempo na Cyberia, até descobrir que ela não estaria mais lá para ele.

Só conseguia se conectar a Jessica, e mais ninguém. Até tentou buscar abrigo em outras personas, mas nenhuma compreendia ele ao ponto do êxtase.

Chegou em casa, novamente abandonado. Duas vezes, por ela. Cada centímetro de seu corpo doía, num misto de dormência e ira, em cada passo que dava.

Passou por seu próprio notebook quando pensou ter ouvido aquela voz, que tanto o encanta.

“Tony… Tony, você está aí?”

Então, ela não o tinha abandonado… ou será somente uma ilusão? De qualquer forma, viu a imagem de Jessica se constituir em seu monitor, perfeita e impassível.

“O que você está fazendo aqui?”

Aquele sorriso discreto, que tanto amava nela, se formou em seus lábios finos.

“Vim buscar você, para finalmente ficarmos juntos.”

Pouco antes do anoitecer definitivo, Antônio voltou para casa. Trouxe consigo algumas coisas, necessárias para realizar o seu desejo.

Providenciou eletrodos caseiros, acoplando eles diretamente ao seu notebook. Passou a mão em seu dispositivo de PA, lembrando que tinha feito o implante por questão estética; até então, nunca tinha explorado de fato o potencial daquele implante, e só naquela hora percebeu o sentido de suas escolhas.

“Nada acontece por acaso, não é?”

Jessica reagiu ao seu retorno.

“Então… você está pronto?”

O rapaz nada disse; apenas sentou-se na frente do aparelho, arrumando tudo de acordo com as instruções dadas por ela. Ficou assim por uns quinze minutos, até que tudo estivesse realmente pronto, e então a encarou.

“Acho… que sim.”

Plugou os fios no aparelho, e colocou um disco novo no drive do mesmo. Tão logo o fechou, pôde ver a imagem digital de Jéssica diminuir, do close no rosto para abranger seu corpo inteiro, e nu.

“Estou esperando por você.”

Assim que iniciou o processo de transferência, sentiu a dor percorrendo pelo seu cérebro, como eletricidade. Antonio estava fritando aos poucos, a visão ficando turva com o crescer da margem de dados transferidos.

“Não esqueça de manter a ordem!”

Ela falava sobre manter um pensamento fixo, para que o corpo pudesse reagir instintivamente logo após o término da transferência. Foi assim que aconteceu o seu “suicídio”, ao pensar fortemente em se lançar de sua varanda.

Ela só não esperava que Antonio estivesse com a mente longe disso. Tão logo a transferência prosseguia, seu corpo se apagava aos poucos. Tinha na mente o toque pleno na mão de Jessica, e um relance de sua imagem se compondo no monitor do notebook.

“Falta pouco… muito pouco!”

Até mesmo a voz eletrônica de sua amada estava se perdendo, junto com a audição antes clara. Não seguiu a instrução, e o corpo começou a entrar em colapso.

Faltava 10% para concluir o processo, e Antonio sentiu o resquício das dores lhe tomar a consciência.

“Não!”

Jessica precisou puxá-lo para o seu ambiente, e isso interrompeu o processo. Carregou nos braços o que tinha passado na transferência: uma imagem reduzida de Antonio, em resolução inferior à dela. Uma imagem incompleta.

O restante havia retornado ao corpo, em um choque definitivo, e irreversível.

“Oh… eu cheguei! Aqui estou, meu amor!”

A voz não era mais a mesma, e seus movimentos eram erráticos, carregados de lag. Antonio não podia ser o mesmo, nunca mais. Jessica esboçou um choro baixo, enquanto migrava com seu “novo amigo” até os confins do ciberespaço — deixando para trás uma casca semi-vazia, e vegetativa.

“Agora, vamos conhecer o mundo, nós dois.”

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Jairo B. Filho
Dissociação

Game Designer independente, fundador do selo Jogos à Lá Carte e entusiasta de pesquisas e boas conversas.