Ed/Hyde

Jairo B. Filho
Dissociação
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4 min readMay 24, 2017

“Finalmente, você acordou!”

Olhou para os arredores, com a visão ainda turva e mal-acostumada com a luz. Esquadrinhou a forma de um homem, baixo e de vestes brancas, enquanto este lhe dava as costas para responder a um ruído persistente, à distância.

“Abra logo a porta, ou teremos de usar a força!”

Olhou para suas próprias mãos, antes de virar-se novamente para frente. Elas pareciam mais leves do que se lembrava, resultando em movimentos desajeitados.

Como se, no fundo, não lhe pertencessem…

O sobressalto daquele homem acionou seus sentidos, pois a porta cedeu à força que vinha de fora. Ele caiu para trás, prostrado perante as armas dos recém-chegados militares.

“Nenhum movimento, Clarke!”

O doutor permaneceu quieto, a não ser pelo nervosismo que o fazia tremer. Principalmente quando uma figura se revela entre os invasores, com andar e olhar duros como pedra.

“Há quanto tempo, ‘doutor.”

O cientista rendido deixou a cabeça cair, olhando para baixo. Estava bem ciente do que fez, e de como isso ofendia o Exército.

Apenas esperava por sua punição.

“Você tem algo que nos pertence, não é mesmo? Apenas me diga onde está, que o deixaremos com sua vidinha patética…”

O doutor nada disse, esboçando até um sorriso discreto ao ouvir o estouro da janela, no quarto dos fundos de seu apartamento.

“Acho que não, Coronel.”

Foi neste momento que a corrida começou, de fato.

Sem olhar para trás, ele saltou — desafiando sua própria coragem para não se curvar àqueles homens.

Ficou impressionado pela distância que superou, sem qualquer sinal de dor ou cansaço. Só não sabia em que momento essa… mudança súbita lhe aconteceu.

A essa altura, Ed estava bem consciente de si; ou, pelo menos, assim pensara. Tinha suas lembranças mais antigas consigo: seus momentos com Sílvia deveriam ser próximos, mas parecem tão obscuros e sem detalhes…

Voltou de sua autopercepção quando notou que os guardas desciam as escadas com pressa. Percebeu que não podia confrontá-los com as mãos nuas — não tinha nem mesmo roupas consigo…

Deixou que quatro soldados o cercassem, com os fuzis em riste.

“Não se mova! Não queremos ter de atirar em você!”

Um deles baixou sua arma, apresentando um par de algemas para completar o que seria sua missão.

Ed não teve a intenção de reagir, mas o seu corpo agiu mais rápido. Em uma fração de segundo, o tinha nocauteado com as mãos nuas, e logo avançava sobre os outros com movimentos precisos e muito ágeis.

Quando se deu conta, tinha desarmado todos eles. Percebeu a mensagem de seu líder entre os estalos de um aparelho de rádio (posse do soldado que lhe deu voz de prisão), questionando sobre a situação.

A mente estava ficando turva, pelas lembranças de um momento bloqueado por sua própria mente. As noites no front, os companheiros caídos pelo caminho, as explosões…

Tudo isso acionou uma segunda voz em sua mente, que lhe dizia o que fazer:

“Esse maldito vai pagar pelo que nos fez!”

Com a fúria guiando seus passos, caminhou até o interior do prédio. Não carregava nenhum tipo de arma consigo; os dedos estalavam em cada movimento, como se procurasse conhecer a extensão de sua força…

Acabou cruzando com ele na entrada, reconhecendo prontamente aquele olhar sisudo e, ao mesmo tempo, sádico.

“Coronel…?”

Com uma pistola na mão, ele mantém a postura de autoridade que sempre o destacou.

“Há quanto tempo, Ed. Fico satisfeito por ver que você optou por manter a ordem.”

Foi neste momento que sua mente “desligou”; não viu nada além do primeiro contato que teve com seu antigo superior, e se deixou levar pela voz interna novamente.

“Iniciando protocolo de combate.”

Um estalo derruba Ed do controle de seus atos, por pouco mais de três minutos. Depois desse “blecaute”, despertou com o cheiro forte de sangue.

Que vinha de suas mãos, tingidas do vermelho mais natural deste mundo.

Olhou para o chão, à sua volta; reconheceu o Coronel apenas pelos seu fardamento, picotado junto aos pedaços de seu corpo. Mas havia outros corpos ali, também fardados e fortemente armados…

“Meu Deus… o que foi que eu fiz?”

Um pouco acima, nas escadas, o homem de branco caminhava, apoiando-se no corrimão.

“Você… está vivo, Ed. E, ao mesmo tempo, ainda é uma máquina.”

Sem entender, ele se aproxima do doutor. E assim a história foi contada: seu desempenho na Guerra, seu “resgate” dos laboratórios militares, e o trabalho para lhe conseguir um corpo novo — uma chance para refazer sua vida.

“Só não esperava que a programação militar estivesse em sua PA. É um procedimento atípico, já que as grandes unidades de batalha usam sistemas auxiliares de programação…”

Clarke mal conseguia respirar, e Ed nada podia fazer para privá-lo desse desconforto.

“Vá, e siga seu próprio destino, Ed. Busque o controle sobre seus atos, para evitar que outros se machuquem…”

Com o doutor desacordado, chamou uma ambulância para a cena, pois desejava que seu benfeitor ficasse bem.

Juntou algumas roupas e partiu, antes que o som das sirenes invadisse o vácuo que tomou as ruas próximas. Sem olhar para trás, olhou para o horizonte.

“Não tenho para onde ir…”

Em seu íntimo, sabia muito bem o que sua “programação” desejava fazer.

“Sua vida foi tirada por eles, Ed. Seria justo fazê-los pagar por isso.”

Dando ouvidos a “si próprio”, deixou-se guiar rumo ao horizonte — até se perder no labirinto de concreto que constituía a cidade grande. Não podia contar com ninguém senão seu “outro lado”, e aceitou assumir esse risco. Seria ele, contra o mundo, daqui em diante.

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Jairo B. Filho
Dissociação

Game Designer independente, fundador do selo Jogos à Lá Carte e entusiasta de pesquisas e boas conversas.