Ego/Id

Jairo B. Filho
Dissociação
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4 min readDec 30, 2017

“Uhnn, onde diabos está aquele analgésico?”

A cabeça de Edgar latejava, como se um bate-estacas impusesse seu ritmo sem parar. Não conseguia se lembrar de nada durante a noite, mesmo tendo a sensação de não ter dormido um instante sequer.

Cambaleando, aproximou-se da pia assim que conseguiu encontrar a pílula que tanto procurava. Colocou-a sobre a língua, sem qualquer cerimônia, a afogando em um longo gole d’água. Percebeu o quão seca estava sua garganta, e sucumbiu ao desejo por mais um gole.

“O quê está acontecendo comigo?”

Sua visão estava tomada por pequenas rupturas, que desfocavam tudo. Algo doloroso e perturbador, que o médico de sua equipe chamou de “aura”. Há pouco mais de uma semana, essa sensação ruim estava o perturbando.

Por coincidência, começou quando aquele estranho implante foi instalado em suas têmporas. Podia sentir o metal frio entrando em sua pele ao tocá-lo com a ponta dos dedos. Era tão confortável quanto uma faca, cravada na base do seu crânio.

Apesar do desconforto, Edgar estava ciente daquilo. Fora advertido dos possíveis efeitos colaterais quando se voluntariou para o experimento, junto com alguns colegas pilotos. O orgulho de integrar um projeto experimental de link psíquico com aeronaves da força aérea era maior que qualquer coisa; deixava de servir ao seu país para servir, de modo direto, à humanidade.

E, por conta disso, precisava anular aqueles efeitos hoje. Em algumas horas, deveria estar pronto para o primeiro teste público do experimento. Diversas autoridades estariam presentes, e o futuro do projeto estava em suas mãos.

Junto com aqueles dois comprimidos, semelhantes ao que tomou alguns minutos atrás.

Pronto para voar, caro amigo?

O sorriso de Ana, um pouco contido, tirou os pensamentos de Edgar sobre seu desconforto. Estava suando frio, e com o estômago embrulhado — sensação essa que não sentiu desde os tempos da guerra.

Ele respondeu com um aceno, mantendo a cabeça baixa para não demonstrar o seu estado.

“Como se Ana já não tivesse percebido… merda!”

Vestiu o velho macacão de piloto com dificuldades, sentindo-se sufocado. Nem mesmo em seu primeiro vôo tinha sentido algo assim, e algo estava começando a preocupá-lo.

Olhava para suas próprias mãos, buscando entender o motivo de tamanha tensão.

“Ora, Ed. Talvez, você deva deixar isso comigo…”

Olhou para trás, certo de que alguém lhe falara. Não havia ninguém além dele no vestiário, naquele momento. Era só o que faltava: alucinações.

Concentrado, pegou seu capacete da sorte, e o beijou sobre a bandeira de seu país — um ritual que adotou quando foi lutar pelo seu povo. Em passos enrijecidos pela determinação, caminhou até a pista de decolagem, deixando-se cobrir pelos aplausos da platéia: representantes do Estado-Maior, que nada se importam com o seu estado, estão ali para vê-lo comprovar o trabalho de pesquisa que durou por quase cinco anos.

Embarcou no cockpit de seu jato, o mesmo que pilotou desde o início de sua participação no experimento. Vestiu seu capacete e ligou os instrumentos um a um, como já estava acostumado a fazer.

Ao sentir o trepidar dos motores, relaxou sua cabeça na poltrona e ligou o plugue neural da nave em seu implante. E foi nesse exato momento que a dor voltou, aumentando ainda mais os efeitos da aura e de sua ansiedade.

“Vamos, Ed. Pode liberar o controle para mim.”

A voz soava mais alto desta vez. Quase como alguém gritando ao seu lado. Mas… o que podia ser isso?

Uma vez que o cockpit estava selado, ninguém do lado de fora podia ver o que estava acontecendo com Edgar. Apenas Ana tinha contato com a nave, no intuito de monitorar o experimento.

Mas, por algum motivo estranho a ela, o rádio da nave estava desligado. Mal teve tempo de entender o que estava acontecendo, pois o avião já estava no ar.

O teste deveria ser simples: algumas manobras de pilotagem complexas, e o abatimento de alguns alvos aéreos para comprovar o controle não apenas sobre o veículo, mas também sob seu armamento. No entanto, Edgar já estava fora de si logo na primeira manobra.

Novamente se viu na guerra, disparando e bombardeando hordas inimigas — os demônios que passou a nutrir no íntimo de sua alma. Sentia que, no fundo, devia se sentir extasiado em destruir o fruto de seus pesadelos.

Estava chorando, quando viu que não estava em um sonho. A “voz” em sua mente tomou o controle da situação e atacou a base de lançamento. Ninguém da platéia sobreviveu para contar a história.

“Ana… meu Deus…”

Olhou novamente para o radar, percebendo que outras duas naves entravam no seu perímetro. Apesar do seu estado de ansiedade, o jato estava completamente estável, inabalável a tudo isso.

“Deixa isso comigo, Ed.”

A “voz” novamente se calou, antes de manobrar novamente e disparar contra as outras aeronaves. Sem sinal de piedade.

Edgar apenas assistiu às explosões, atônito. Não sabia se sentia ódio, amargura, ou satisfação pelo que via. E foi nessa hora que tudo ficou claro.

Aquela parte de si, que voltou da guerra e que a terapia tentou reprimir, estava viva. Se deixou agir como desejava, declarando guerra contra o mundo depois de tudo que viu na zona de conflito. Uma faceta que despertou com aquele maldito implante em sua cabeça, e que agora não iria mais parar.

E nada mais poderia ser feito, enquanto houvesse munição e combustível naquele caça.

“É todo seu… amigo.”

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Jairo B. Filho
Dissociação

Game Designer independente, fundador do selo Jogos à Lá Carte e entusiasta de pesquisas e boas conversas.