Junkie
“Como você é linda.”
Suas mãos passeavam pelas costas nuas dela, a descobrindo em cada novo toque. Percorriam suavemente, pouco antes de envolvê-la em um caloroso abraço.
Beijos pontilhavam a relação entre os dois corpos, que mesclavam-se no impulso carnal e ardoroso do prazer. Aos poucos, um se entregava ao outro — e o tempo perdera seu ritmo. A sala de estar foi pequena para o amor intenso que ali fora cultivado.
Sensação esta que podia durar pela eternidade…
Abriu os olhos com dificuldade, sentindo a dor mesmo na penumbra. Por quanto tempo teria dormido?
Olhou para os lados, e logo percebeu que estava só. No meio da bagunça em que sua sala de estar tinha se transformado, viu os cartuchos vazios daquela que seria a razão real de sua felicidade nos últimos tempos.
Pôs a mão em sua jugular, desenhando pelo toque a discreta prótese de alocação de sua PA. Junto ao dispositivo de armazenamento neural (“sua alma em seu bolso”, como dizem os comerciais do produto), havia um adesivo protuberante. O destacou com cuidado e paciência, para não desconectar o dispositivo e “desligar” por acidente — não foi legal quando aconteceu pela última vez — mas logo desiste.
“Preciso arrumar mais, primeiro.”
Começou a revirar o caos à sua volta, como se procurando desesperadamente por algo. Passava os olhos por tudo, e breves lembranças emergiam junto com a dor de cabeça.
Lembranças de uma sensação maravilhosa, que não aconteceu.
Ao encontrar uma ecobag no chão, a revirou com a pressa de um cão faminto; espalhou seu conteúdo no chão, até perceber que não havia nada ali, além de outros cartuchos vazios.
Sua medicação tinha acabado.
“Merda!”
O caminhar trôpego denunciava aos outros pedestres a sua deplorável condição. A cabeça doía, num estágio muito pior que das outras vezes, nublando suas percepções e alterando drasticamente seu equilíbrio.
“Acho que peguei pesado dessa vez.”
Pensava isso, no fundo, para se iludir — dizer que a responsabilidade sobre os efeitos colaterais é sua, e de mais ninguém. Afinal, trata-se de uma medicação extrema, indicada somente em casos muito particulares.
Mas os avisos sobre a superdosagem foram constantemente ignorados. Pensou que seria capaz de se acostumar à carga, mas parece que o se enganou redondamente.
Teve certeza disso quando a viu passar pela multidão, o encarando com seu olhar cobiçoso…
O corpo reagiu antes da mente, se lançando para agarrar a dama de seus sonhos…
…apenas para ver que, na verdade, abraçara um homem alto e parrudo, que logo revidou ao ataque com violência.
A dor agora estava distribuída por seu corpo: braços, abdômen, rosto… e a cabeça, claro. Tudo parecia mais turvo e desfocado que antes, e precisou parar na farmácia mais próxima.
“Nossa, você está bem?”
A voz sutil da balconista soava como acolhedora, muito diferente de sua expressão — que novamente lembrava sua musa.
Reagiu num sobressalto, caindo no chão. Ela tentou se aproximar novamente, para lhe prestar socorro.
“Não! Fica longe de mim!”
Passou a noite fora de casa, de tão assustado que ficou. Ou teria se desorientado tanto, a ponto de esquecer o caminho?
“Isso não importa, agora”, pensou. “Preciso de ajuda”.
O frio do anoitecer penetrava em seus ossos, e fazia doer seus ferimentos; a cabeça fervilhando e lhe pregando peças, todas elas com a imagem de sua “amante”.
“O que essa merda fez comigo?”
Sabia que o único remédio para isso seria ficar entorpecido novamente; a lembrança desejada iria preencher o vazio com algo, até que seu efeito passasse. Mas precisava de dinheiro para isso, ou de uma receita… o que viesse primeiro.
Passando por uma loja especializada neste tipo de medicação, viu um senhor saindo com alguns cartuchos na mão. Sua boca chegou a salivar com aquela oportunidade, o alívio prestes a ser obtido.
Esperou o transeunte se afastar da multidão, para obter a sua cura. Com um pedaço de pau, o golpeou pelas costas — de modo a não ser visto por ninguém, e poder fugir rapidamente.
Pegou os cartuchos e se afastou da cena, tomando alguns guetos escuros como rota. Esforçava-se para lê-los, descobrir que tipo de sensação eles poderiam lhe fornecer… e seus olhos piscaram, incrédulos, pela coincidência.
“Noite de amor”.
Juntou os adesivos em uma massa, ignorando a própria prudência e tudo que sentiu durante o dia, para que o barato pudesse durar a noite toda. Nada mais importava, no fim das contas.
O choque veio quando colou a massa de adesivos em seu dispositivo de PA; forte como um banho de ácido sulfúrico, mas com imediata leveza e bem-estar, induzidos pela lembrança injetada.
Seu corpo perdera os limites da dor, e do cansaço — dando lugar à liberdade incondicional. Se pôs a correr, pois o desejo de voar com o vento veio à tona.
E foi isso que lhe conduziu ao acidente: a queda de um viaduto, espatifando-se com uma rodovia lotada. Os técnicos puderam perceber que, além da superdosagem, um uso equivocado da medicação teria causado sua morte.
A lembrança injetada chamava-se “O primeiro Vôo”.