“Kickado”

Jairo B. Filho
Dissociação
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6 min readJan 8, 2018

“Vamos, Lucas! Vai ficar para trás desse jeito!”

Caminhar por aquela mata luminescente não era tarefa fácil, graças ao peso de sua armadura e do machado adquirido na última missão. Nada que, no entanto, atrapalhe de fato; foi um loot valioso demais para ser descartado assim, do nada.

Deixava que os outros membros de sua guilda avançassem, ciente de que não fariam nada sem contar com a sua presença antes; afinal de contas, por maiores que fossem seus níveis, um Assassino não poderia fazer muita coisa ao lado de um Mago e um Sacerdote na Floresta dos Trolls. Eles precisavam de alguém para “agraar” contra esses monstros — e apenas o Rei Bárbaro de Lucas poderia fazer isso.

Foi então que a caminhada cessou, e o Bárbaro pôde ver a imensidão escura da caverna em sua frente.

“Tua vez, Cadu!”

Brandindo seu cajado de madeira finamente entalhado (e, por consequência, as barras longas das mangas de sua túnica brilhante), foi a vez do Mago intervir, lançando encantamentos e magias de proteção ao guerreiro do grupo. Uma língua de chamas encobriu a lâmina do seu machado, fornecendo dano extra de 100 pontos por Fogo por aproximadamente vinte segundos — para Lucas, era tempo suficiente para avançar até o grande desafio.

Para os demais membros da guilda, um manto de luz branca formou um escudo para seus corpos, aumentando sua resistência a danos por algum tempo.

Nesse meio tempo, o silencioso Vicente customizava seus equipamentos, com o vislumbre de muitas adagas multicoloridas passando por suas mãos, até chegar em uma lâmina pequena e curva, ardendo em brasa.

“Colocou as magias de cura nos Atalhos, Marquinhos?”

O “Y” marcado no chat foi a resposta que todos esperavam.

“Então, vamos!”

Lucas tomou a frente, machado flamejante em punho, avançando para a caverna pronto para lutar… quando uma voz um pouco distante ecoou no centro de sua cabeça.

“LUCAS! Desliga já essa coisa e vai dormir!”

Virou-se para o lado, e a realidade se fez presente num baque: o cascudo de sua mãe, com aquele olhar irritadiço que ele tanto buscava evitar. Nem teve tempo de tirar os fones de ouvido, pois ela já o tinha feito para demonstrar sua autoridade.

“Chega de jogos por hoje! Amanhã você tem aula, e não pode faltar!”

A postura cansada de sua mãe convenceu Lucas a deslogar, quase sem se despedir dos seus parceiros — já que os veria na escola, poderia explicar o que aconteceu. Foi direto dormir, já que a ausência do jogo o fazia dormir muito mais rápido. E isso o fez esquecer de ejetar o disco do jogo de seu aparelho de PA.

“Hey, Lucas… Hey!”

O garoto acordou no susto, com a pancada do giz que o professor arremessou em sua cabeça. Os risos vieram logo em seguida, abafando seus pensamentos e o fazendo passar por imbecil.

Por sorte, o sinal do intervalo tocara no mesmo instante; isso simplificou o sermão do Sr. William em apenas um olhar irritadiço — aqueles, do tipo “Você ainda vai pagar por isso, garoto!”

O amparo veio apenas na presença de seus fiéis companheiros, tanto na vida real quanto na virtual: Marquinhos, Vicente e Cadu.

“Hey, cara. O que houve?”

Lucas olhou para eles, aturdido e distante de toda a situação.

“O… que aconteceu?”

Os rapazes não sabiam o que dizer, com o riso subindo à garganta. Apenas Vicente respondeu, ajeitando seus óculos de armação fina.

“Você não viu nada da aula. Ficou dormindo até começar a roncar alto, e suspirar como o ‘Rei Bárbaro’ de Menn-Kath…”

O garoto, ainda sonolento, começou a se enxergar: começou por suas mãos, e foi avançando pelo ambiente da sala de aula. Em seus olhos, ainda estava na floresta — mas não tinha sua armadura brilhante, ou tampouco seu machado.

“O… o que fizeram com o meu loot?”

Os garotos não entenderam o que estava acontecendo, até que Lucas saísse correndo da sala, em aparente surto. Não restou nada a eles senão segui-lo e, quem sabe, tentar ampará-lo…

“Lucas, peraí! Cara, se acalma…”

Os três pararam ao ver seu amigo esbarrando em Wallace — uma das figuras mais respeitadas, e também arrogantes, de toda a escola. O rapagão deteve o garoto em surto, o pegando pelo colarinho de sua camiseta.

“O que pensa que está fazendo, rapaz? Quer apanhar?”

No pico de sua crise, Lucas respondeu com uma cabeçada certeira no nariz da estrela do time de futebol local, o fazendo sangrar e caindo no chão logo em seguida.

“Moleque filho da puta!”

Com as mãos sujas de sangue, Wallace esbravejava e chutava o garoto no chão, atraindo uma massa de alunos curiosos e ávidos por um pouco de ação. Acertou o rapaz meia dúzia de vezes, antes de se forçar ainda mais para jogá-lo contra uma das paredes do corredor.

“Lucas!”

Os rapazes foram acudi-lo quando ele mal conseguia se levantar. Olhou para o lado, com a visão turva, e viu uma entidade sagrada lhe oferecer o seu machado de batalha. Colocou a mão nele, sentindo as dores da provação, enquanto bradava:

“Vamos, Cadu! Use suas magias de buff pra mim! Marquinhos, me cura!”

Os garotos olharam entre si, atônitos; teria o Lucas enlouquecido por causa do jogo? Vicente foi mais espero, correndo até a secretaria sem nada dizer para acionar o sinal de retorno às aulas.

Para Lucas, no entanto, aquele era o sinal das magias fazendo efeito — confirmando as proteções e auxílios de dano.

“Vem, seu troll de merda!”

Em um misto de riso e raiva, o Rei Troll avançou com suas garras sobre o bárbaro, que mal conseguia erguer seu machado. Não bastasse terem tirado seu precioso loot, teriam também drenado seus níveis de experiência?

Conseguiu evitar o golpe desajeitado daquele monstro por sorte, mas precisava pensar em como derrotá-lo rapidamente. O inimigo se virou, não tão rápido quanto se esperava, para golpeá-lo com seus punhos. E foi nesta hora que viu a brecha de que precisava.

Um balanço do pesado machado fez o Troll cair, sem poder se apoiar em seus pés: o golpe os decepara de modo irregular, na diagonal, jogando a criatura no chão com seu próprio sangue. Podia ouvir até os suspiros de alívio da natureza, o agradecendo por libertá-la deste tirano.

Na realidade, Lucas cortara os dois pés de Wallace num inacreditável golpe, o jogando no chão e provocando terror entre os espectadores. Reunia suas forças para brandir o machado de incêndio sobre sua cabeça, urrando para o que poderia ser o golpe fatal. Alguns dos alunos escondiam seu rosto, em prantos; outros corriam por suas vidas, temendo serem os próximos.

Marquinhos e Cadu tentaram segurar o pobre amigo, mas não puderam fazer muita coisa; os olhos dele estavam fixos, e cheios de raiva, no assustado Wallace — que não entendia como sua carreira promissora foi dilacerada em segundos por um garoto de treze anos…

“Nem sua magia, nem seus servos, vão salvar você da morte, Troll maldito!”

Com o cabo do machado, golpeou o rosto de Cadu e o lançou para trás, desvencilhando-se facilmente de Marquinhos para dar o salto definitivo. Naquela hora, pensava apenas em quanto xp e gold ganharia por derrotar um inimigo tão perigoso quanto aquele…

O estalido ôco do machado cravando no crânio da fera deu a Lucas uma breve sensação de alegria. Sensação esta que foi cortada por um choque súbito que percorreu todo o seu corpo, e que se encerrou em uma pontada muito forte na base da cabeça.

Tinha sido o diretor da escola, neutralizando o agressor com um choque lancinante do seu taser. Com Lucas desacordado, coube a ele controlar o pânico que se generalizou, com a morte brutal do admirado Wallace…

Quando acordou, Lucas ainda era o Rei Bárbaro — mas o ambiente era diferente de tudo que vira antes no jogo. Estava em um cômodo branco, como se feito de pura luz; e apenas um pequeno facho de cristal permitia enxergar o lado de fora.

Um ambiente muito parecido com a rua da sua escola, cercado por outros veículos; viaturas, uma ambulância e as expressões chorosas de seus amigos.

Ele nada podia fazer. Tinha sido “kickado” da realidade, e agora restava saber qual seria o próximo desafio reservado ao poderoso Rei Bárbaro. A única coisa que ele sabia é que seria algo além de sua compreensão…

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Jairo B. Filho
Dissociação

Game Designer independente, fundador do selo Jogos à Lá Carte e entusiasta de pesquisas e boas conversas.