Manequim

Jairo B. Filho
Dissociação
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4 min readMay 22, 2017

Olhava para o celular, mais uma vez.

“22:05”.

Os olhos já se moviam, cansados de vagar entre o teto espelhado e o telefone na sua mão. Sua mente ficou dividida entre duas perguntas:

“Por que isso aconteceu comigo?”

“O que estou fazendo aqui?”

Largou o celular na cama, e ficou contemplando a si mesmo por algum tempo. Foi tudo que fez nos últimos dias, para ser sincero.

Tudo isso para refazer seus passos, para entender o que aconteceu. E, principalmente, para se açoitar com a culpa por não ter feito nada por ela.

“Laura… por que você se foi?”

Tudo voltou a passar na sua mente, como um filme. Aquela noite, em seus detalhes: o jantar romântico e acalorado, as mãos sobrepostas na mesa, o sorriso contagiante dela, os desejos que o acompanhavam na estrada…

O fatídico acidente. A dor. A perda.

Percebeu as lágrimas cortarem o seu rosto, e logo se fechou. Por mais doloroso que fosse, não podia mais se abrir para ninguém; apenas Laura podia compreendê-lo, e agora ela não estava mais disponível.

Tudo que tinha dela estava em sua mão direita.

“Senhor?”

O bater da porta foi inesperado, e também incômodo.

“Entre.”

Um rapaz franzino e preso em um fraque escuro trazia outra pessoa em um carrinho de carga.

“Aqui está o seu pedido.”

O “cliente” levantou-se para ver o que lhe fora entregue: um manequim. Com as mesmas feições dela…

De tão fascinado com o trabalho que encomendou, nem percebeu a saída do entregador. Apreciava o rosto daquele corpo como na primeira vez em que a viu, cinco anos atrás.

Olhou, em seguida, para sua mão direita. Um pequeno disco cromado estava ali aninhado, um pouco quente pelo aperto.

Foi tudo que conseguiu recuperar dela — um backup de sua vida, remontado a partir de lembranças e registros dos últimos anos.

“Vou trazer você de volta, Laura!”

Tateou o suave pescoço do manequim, à procura do plug de inserção para colocar sua PA. Estava tremendo de excitação, por finalmente suprir a falta dela.

Com o disco inserido, sentou-se na cama para observar a assimilação de Laura. Chorava mais uma vez, mas de alegria… ou seria de ansiedade por este momento?

Os olhos dela se abriram, anunciando a tão esperada hora.

“Olá”.

Tirou as roupas, apressado.

Tanto “dela”, quanto as suas próprias. Estava extasiado em tê-la de novo em seus braços — de onde nunca devia ter saído…

Deitou-a na cama, sentindo a suavidade de sua pele com os olhos. Passeou por cada curva e sinal que Laura possuía em seu corpo — marcas que aprendeu a conhecer com o passar dos anos.

“Como… como você é linda.”

Ela respondeu com um sorriso tímido, e se deixou envolver pelos braços dele enquanto colavam seus corpos para consumar a paixão que seu cliente tinha guardado.

Foi aí que a realidade veio à tona. Suas carícias eram respondidas por gestos secos, e mecânicos. Da mesma forma, nem a sua tez suave anulou a falta de calor de seu corpo.

Não havia reação, tampouco satisfação em sua face, ou palavras. O tom permanecia o mesmo, notoriamente programado.

“Não… NÃO!”

Afastou-se dela num impulso similar ao medo. Como se tivesse acordado de um pesadelo.

Neste momento, Laura reage. Sentando em uma das bordas da cama, dirigiu a ele o esboço de um olhar terno, e lhe disse:

“O que houve, meu amor?”

Enojado, ele recuou da cama mais um pouco. Não podia crer no que tinha feito, em como tinha se iludido…

“Pare de me chamar assim! Você não é ela. Não pode me tratar desse jeito!”

“Laura” se levantou, estendendo os braços para abraçar aquele a quem deveria amar. Aquele que foi designado como a prioridade em sua programação.

“Não! Já disse para não aproximar de mim. Você não passa de uma boneca, uma réplica da Laura que amei. Nunca será ela!”

A expressão dela endureceu em uma fração de segundo; os olhos fixos a denunciavam como a máquina que era, feita sob encomenda prévia do homem que a rejeitava naquele momento.

Não expressava, portanto, a confusão entre sua programação básica (em que deveria desligar frente ao desinteresse de seu dono) e as memórias do backup da verdadeira Laura (seu temperamento explosivo e dificuldade em aceitar rejeições).

Pelo menos, não até agarrar o pescoço dele com as duas mãos.

Surpreso, ele não conseguia se libertar do estrangulamento. Afinal, não havia sensibilidade nela para dor, por mais que apertasse seus braços finos e altamente resistentes.

O fôlego lhe fugia, levando consigo sua vida. Até o momento de não ter mais forças para reagir. Mas não foi a falta de ar que o fez desistir, de fato; e sim a culpa que carregara consigo, por tê-la deixado morrer daquele jeito…

“Sim, Laura. Me puna”.

Semiconsciente, guardou consigo apenas o rosto petrificado daquele manequim. As feições finas e sérias dela, que jamais se modificaram em sua mente.

Isso, antes que o estalo de seu pescoço anunciasse o fim de sua vida… e, também, de sua dor.

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Jairo B. Filho
Dissociação

Game Designer independente, fundador do selo Jogos à Lá Carte e entusiasta de pesquisas e boas conversas.