Troca

Jairo B. Filho
Dissociação
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5 min readApr 30, 2017

“Boa noite, senhor. Você tem reserva?”

O charmoso rapaz contempla a paisagem que cerca a gentil hostess — um panorama de mesas, e pessoas, ostentando requinte das épocas passadas. Algo bem desconfortável a ele, na verdade.

“A reserva é de Jessica Blenner”.

Com a mão em sua têmpora, tentava relaxar um pouco, tamanha era a pressão que o ambiente lhe impunha. Tudo muito limpo, ou pomposo demais para seu gosto; sentia o mesmo sobre o distinto smoking que o transformava num membro daquela roda…

“Ah, sim. Só um momento, por favor”.

Com um aceno discreto, ela chamou um dos garçons (um homem baixo, mas impecavelmente asseado) e lhe explicou a situação. O visitante tentou seguir-lhe com os olhos, mas o perdeu entre tantos ternos — apenas o percebendo em seu retorno.

“A Sra. Blenner está à sua espera. Por favor, me acompanhe.”

À sua frente, o caminhar suave da anfitriã despertava seus temores. Olhava para o celular mais uma vez, com o fiel aplicativo de encontros aberto; talvez, ela tivesse desistido do encontro, e o tivesse enviado uma mensagem mais cedo.

“Aqui está sua mesa. Por favor, fique à vontade.”

Combinado ao discurso formal da hostess, o sorriso tímido de Jessica foi suficiente para deixá-lo acabrunhado.

“Você chegou bem na hora, o que não é comum para um encontro como este.”

Sentou-se, para não deixar aparente o fascínio que o tomou na hora. A foto que o aplicativo lhe enviou não fazia jus à sua beleza.

Claro que sua estratégia não funcionou; pelo contrário, ela abriu um sorriso discreto em seus lábios finos.

“Então, é isso? Você não vai me dizer nada?”

Engoliu em seco. Pelo receio de trocar os pés pelas mãos, estava fazendo exatamente isso. Olhou para a garrafa de vinho que havia entre eles, e se concentrou em servi-lo.

“É que você… eu nem sei por onde começar, já que fiquei fascinado com sua beleza.”

Jessica passou a mão em seus longos cabelos, visivelmente envaidecida. Foi possível a ele ver, nesta fração de minuto, o brilho opaco da PA dela, que ficou tentando analisar cuidadosamente.

“Ah, então é isso que você quer ver?”

Apesar do fraco desapontamento em sua voz, ela ergue uma larga mecha de seus cabelos para mostrar melhor sua prótese.

“Vê? Sem sinal de Indutores, ou de adulterações. Limpinha, como tem que ser…”

Ele precisava ficar mais à vontade, para não estragar tudo; e viu no vinho o meio de quebrar sua timidez.

“Você viu nos noticiários sobre um caso de overdose desses Indutores?”

Ela riu novamente.

“Você diz o caso do ‘Primeiro Vôo’? Essa gente maluca… com todo o mundo à volta deles, só querem saber do barato, e acabam morrendo de formas tão estúpidas, não é mesmo?”

Ambos riram, e aos poucos o assunto foi se tornando mais interessante, e fluido.

Sinal de que a noite seria melhor que o esperado pelo casal.

Após o jantar, ele a levou até um clube noturno de alta classe, ali nos arredores. Tinha quebrado a barreira, imposta por seu próprio medo, em uma conversa amigável e descontraída.

“Ela… é perfeita!”

Entrando no clube, finalmente se sentiu à vontade; o gelo seco, adicionado ao ritmo mecânico do local e ao suor das pessoas ali presentes, fazia esse “rato clubber” se sentir em casa.

Jessica parecia se acomodar bem àquele ambiente; mais que isso, gostar dele. Tão logo entrou, descalçou seus sapatos e se entregou ao ritmo da festa.

“Gostei de ver, senhorita!”

O elogio a fez reagir de modo inesperado para ele; como que contagiada pelo furor coletivo, o agarrou pelo colarinho para um beijo, lascivo e perfumado pelo aroma do vinho. Mil coisas foram ditas naquele momento: saudade, lamentos pela distância, culpa…

E, principalmente, o desejo.

Esse foi o princípio real do encontro, para eles. Juntos, dançaram por um bom tempo — entregando-se ao calor da hora.

O ritmo se acirrava em cada música, e seu desejo por liberdade afetava outros festeiros ali próximos. Beijos eram trocados com eles, e a dança ganhava significado ainda maior.

Em alguns momentos, ele parava para entender a ironia do contexto. Boa parte das músicas era do século passado, com batida forte e letras melancólicas sobre o futuro — o período que estava vivendo, o seu agora. Ah, se os músicos soubessem como está o mundo hoje…

Jessica o puxava de volta para a festa, para levá-lo ao limite da alegria, e exaustão.

Abriram a porta de seu apartamento, trocando beijos. O calor dos braços de Jessica quase o sufocava, de tão inebriante — a ponto de quase tirar-lhe a atenção sobre seus atos.

Aos esbarrões e risos, chegaram até a cama de solteiro. Estavam completamente entregues um ao outro, duas almas ébrias do êxtase daquela festa, e do tesão que possuíam entre si.

Ao livrar-se das roupas, pensavam nos meses em que passaram conversando, trocando carícias e palavras belas pela internet. No tempo que a distância os tomou. Seus sentimentos e desejos estavam sincronizados, ao mesmo tempo que sentiram-se sós por todo esse tempo…

Como um vulcão, o amor deles explode naquele quarto em um momento tórrido. Mãos passeiam pelos corpos, ao ritmo dos gemidos e palavras guiadas pelo prazer.

Com a chegada do gozo, eles param um pouco para respirar. E a ideia vem de imediato, dos lábios finos dela:

“Podemos trocar agora… né?”

No fundo, ele esperava por essa pergunta. Foi o que o levou à Jessica, desde o princípio. Queria experimentar o “outro lado”, principalmente por estar cansado da rotina.

Queria, no fundo, ser diferente do que é.

“Claro.”

Com cuidado, se aproximaram para realizar a troca, como se fosse um ritual já ensaiado várias vezes. Jessica, por já ter vivenciado isso antes, sabia o que fazer e foi guiando os passos de seu aprendiz. Tocavam juntos as próteses um do outro, os dedos bem próximos dos dispositivos de PA.

“Pronto?”

Consentindo, ele desconectou o aparelho dela, e o mesmo aconteceu com ele. Como uma reação natural de biofeedback, o corpo responde em trinta segundos o último impulso canalizado pela PA antes de “desligar” completamente. Tempo mais que suficiente para reacionar o sistema com novos dispositivos.

Um pouco confuso, ele agora podia se ver pelos olhos de Jessica; e não lembrava de ver seu corpo com tanta atração como agora. Podia ver que sua acompanhante pensava o mesmo, pelos olhos arregalados.

“Nunca consigo me acostumar a isso”.

O sorriso dela mantinha o mesmo ar sedutor, mesmo em seu corpo. O mesmo podia dizer de seus “novos” olhos, enquanto se deixava cair no abraço de Jessica…

“Quero ser sua”.

A voz, ainda pouco acostumada com o novo timbre, saiu meio desengonçada de seu novo rosto. Mas a mensagem foi prontamente entendida por Jessica, que já sabia o que fazer…

“Temos a noite toda para nós, ‘boneca!”

Acordou com o aroma de café fresquinho chegando à cama.

“Bom dia, linda!”

Ainda se acostumando ao novo corpo, “ele” respondeu com um bocejo pouco antes de se servir.

Tomaram café juntos, combinaram quando seria o seu próximo encontro, e cada um seguiu o seu caminho. Não tinham o que temer, um sobre o outro, tamanha era a cumplicidade entre as partes.

Um pacto, maior que qualquer sinal de lealdade ou amor, agora unia seus corpos… e mentes.

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Jairo B. Filho
Dissociação

Game Designer independente, fundador do selo Jogos à Lá Carte e entusiasta de pesquisas e boas conversas.