Bioética — Importância e Conceitos

No texto dessa semana, vamos apresentar um pouco a história da bioética, explicando o Relatório de Belmont e seus princípios.

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Introdução

Recentemente, uma grande discussão apareceu no Brasil: até onde vai a autonomia dos médicos? O que esses profissionais podem fazer com seus pacientes? Podem receitar remédios/tratamentos ainda em fase de teste/sem comprovação? Essas perguntas, na verdade, já estão respondidas no Código de Ética Médica. Agora, uma outra pergunta pode ser feita: devemos seguir esse Código até mesmo em momentos de crise, como a pandemia que estamos vivendo? A resposta é sim. A bioética foi criada com um propósito único, que é a proteção da vida humana. Antes de falar sobre essa área, vamos apresentar alguns acontecimentos que ocorreram no passado.

Campos de Concentração Nazistas

Durante a segunda guerra mundial, diversos experimentos foram realizados usando os judeus nos campos de concentração. Josef Mengele [1], um médico nazista, realizava as mais desumanas e letais pesquisas. Uma dessas, numa tentativa de “provar” a superioridade da raça alemã, consistia de infectar os judeus com diversas doenças e ver a resistência deles. Muitos foram mortos durante essas experiências, e aqueles que sobreviviam eram mortos para analisar o corpo.

Experimento da Sífilis em Tuskegee

O segundo caso [2] que trazemos aqui é um que ocorreu nos EUA, de 1932 até 1972, realizado pelo próprio Serviço Público de Saúde (SPS). Ao todo, 600 indivíduos afro-americanos com sífilis foram utilizados como cobaias humanas, dentre os quais 400 não foram sequer informados de seu diagnóstico, a fim de observar a progressão da doença sem tratamento médico. Eram informado apenas que apresentavam algum problema e, que se ajudassem na “pesquisa”, ganhariam tratamento. No meio desse experimento, em 1943, a penicilina demonstrou apresentar bons resultados para enfrentar essa doença; mas essas pessoas não foram tratadas nem informadas disso, elas continuaram a ser cobaias humanas. No final, a maioria faleceu, houve transmissão para outras pessoas e até crianças nasceram doentes.

Figura 1 — Coleta de sangue das pessoas em Tuskegee. Extraído de [2].

Esses dois acontecimentos desumanos apresentam alguns pontos em comum:

  • As vítimas dessas experiências não tinham liberdade de escolha: os judeus eram prisioneiros dos nazistas; no caso dos EUA, os participantes não tinham o conhecimento real do seu diagnóstico, e foram influenciados a participarem pelo suposto tratamento gratuito que ganhariam;
  • Os experimentos traziam mais riscos do que benefícios às vítimas: muitos morreram, o risco foi muito maior que os benefícios, informação já conhecida pelos médicos na época;
  • Os resultados dos experimentos iriam favorecer um grupo diferente das vítimas: o uso dos judeus e dos afro-americanos se deu pela posição deles, enquanto que os primeiros eram prisioneiros, o segundo eram desfavorecidos economicamente e racialmente (e por isso foram influenciados pelo tratamento gratuito).

Esses 3 pontos são os princípios do Relatório de Belmont que apresentaremos agora.

Relatório de Belmont

Em 1979, foi publicado o Relatório de Belmont a fim de evitar que novos episódios como os citados anteriormente acontecessem novamente. O seu objetivo era explicar os princípios éticos relacionados à pesquisa na área da saúde envolvendo pessoas. Ele possui 3 grandes princípios:

1 — Respeito pelas pessoas: esse princípio consiste em respeitar os indivíduos, lhe garantindo todas as informações necessárias. Além disso, é necessário garantir sua compreensão dos fatos: apresentar informação de forma desorganizada pode levar o indivíduo a possuir outro entendimento da pesquisa. As pessoas devem estar cientes e concordar com o que está sendo proposto no estudo.

No entanto, nem todos possuem a capacidade de entender/concordar com o experimento. Aqueles que por alguma doença ou pela idade não possuem essa capacidade devem ter sua proteção garantida, mesmo que isso signifique não participar de alguma atividade que possa trazer riscos.

É importante ressaltar um ponto: as pessoas que participam do estudo devem ser voluntárias e possuir o conhecimento necessário (ou proteção, no caso dos incapacitados). Embora isso aparente ser óbvio, é difícil de aplicar na prática — isso será discutido mais pra frente.

2 — Benevolência: esse princípio busca maximizar os benefícios e minimizar os riscos nos estudos. Parece o mais óbvio, mas tem um ponto problemático, que é sobre riscos: nem sempre há a informação do risco. Por isso, surge um problema, qual deve ser o benefício para que os voluntários participem de uma atividade que apresenta algum risco? Essa questão deve ser debatida antes de iniciar a pesquisa e, em seguida, informada aos voluntários, conforme explicado no princípio anterior.

3 — Justiça: esse princípio está relacionado a quem deve receber os benefícios da pesquisa e quem deve ser utilizado nela. A seleção dos voluntários, por exemplo, é um dos problemas que pode ocorrer. Vieses que ocorrem na sociedade (seja por motivos culturais, religiosos, sexuais, etc.) podem prejudicar nessa seleção. Um outro problema que ocorre é que, embora as pessoas precisam se voluntariar (como discutido no item 1), pode ocorrer casos onde ocorre envolvimento de um grupo vulnerável (pessoas doentes, pessoas com condições econômicas inferiores, entre outras), visto que podem ser manipuladas dadas suas condições. Essa vulnerabilidade pode causar um viés na pesquisa, podendo ter problemas posteriores.

É importante observar que esses princípios buscam somente um objetivo: garantir a segurança e, por sua vez, a vida das pessoas em pesquisas.

Figura 2 —Livro com conteúdo do relatório de Belmont, da editora Forgotten Books.

Conclusão

Hoje apresentamos os 3 princípios discutidos no Relatório de Belmont, um dos documentos mais importantes no desenvolvimento da bioética. Mostramos acontecimentos anteriores que fizeram o surgimento dessa área importante para o nosso dia a dia. Mesmo em tempos de crise, devemos seguir seus pontos para que as vidas das pessoas sejam protegidas.

Referências

[1] Josef Mengele | Holocaust Encyclopedia (ushmm.org)

[2] Estudo da Sífilis não Tratada de Tuskegee — Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

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