Genética, evolução e saúde humana

Você já deve ter ouvido que o seu histórico familiar e genética possuem uma grande influência em sua saúde, mas você sabia que algumas doenças podem ter origem em ancestrais muito distantes?

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A medicina evolutiva

Com o avanço nos conhecimentos em biologia molecular e evolução, estudos da medicina evolutiva abordando doenças comuns aos seres humanos estão cada vez mais comuns. Basicamente, a medicina evolutiva pode ser definida como a “aplicação da teoria da evolução por seleção natural à compreensão de problemas de saúde humana” [1]- ou seja, essa área da medicina busca, além de observar os aspectos clínicos das doenças, encontrar e compreender as origens desses distúrbios e como elas estão relacionadas a fatores genéticos e ambientais ao longo da história evolutiva. É esse aspecto que será discutido nesse texto, analisando a importância do ponto de vista da medicina evolutiva na sociedade atual.

A relação entre genética, evolução e doenças humanas

A nossa maquinaria de replicação, transcrição e tradução do DNA possui uma origem muito antiga, de bilhões de anos atrás, marcando os primórdios do desenvolvimento da vida como conhecemos hoje. Apesar disso, ao longo da evolução, o material genético e o funcionamento dessa maquinaria foram base para o desenvolvimento de diversas mutações, que geraram toda a diversidade biológica que observamos na atualidade — cada modificação no material genético dos indivíduos foi responsável por diferenças morfológicas, fisiológicas e até comportamentais que resultaram em especiações. Nesse processo de ocorrência de mutações e processos adaptativos, a seleção natural agiu ao longo do tempo, selecionando os mais aptos para determinados ambientes, em determinadas situações.

Entretanto, uma característica percebida pelos cientistas como muito comum na evolução é a presença de trade-offs: eles nada mais são do que trocas, compensações. É como se, durante a evolução das espécies, a biologia desse um presente com uma mão, mas também tirasse com a outra: humanos, por exemplo, ganharam a capacidade de desenvolver habilidades cognitivas complexas, desenvolver projetos e guardar informações — porém, com os cérebros possuindo tamanhos maiores e trabalhando mais, o risco de surgimento de doenças neuropsiquiátricas é maior.

Essas compensações são um dos temas muito interessantes trabalhados pela medicina evolutiva. Algumas dessas trocas são mais antigas, como o desenvolvimento da capacidade de comunicação, auto replicação e controle das células — se por um lado isso possibilitou o desenvolvimento de animais pluricelulares (com mais de uma célula) e complexos, por outro possibilitou falhas comunicativas e o desenvolvimento de condições muito complicadas, como o câncer (que é basicamente a divisão e crescimento celular descontrolado). Ao longo da história evolutiva, muitas enfermidades humanas tiveram origem em raízes antigas, comuns a outros animais. Já outras tiveram como substrato adaptações mais específicas, que são comuns apenas a humanos e que tiveram uma forte influência das pressões ambientais.

Influência dos hábitos e ambientes na evolução

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Apesar de os genes serem a base para mutações e modificações em seres vivos, o que determina a sobrevivência de um indivíduo e perpetuação de sua espécie é o quão adaptado ele está a um determinado ambiente — de nada adiantaria o desenvolvimento de características super complexas em uma espécie se elas não são favoráveis à sobrevivência do indivíduo em seu espaço. Dessa forma, uma das pressões seletivas mais significativas em humanos é o ambiente e a interação com ele. Mudanças drásticas na demografia, alimentação e no clima foram fundamentais para o desenvolvimento e perpetuação de diversas complicações de saúde atuais.

Duas condições humanas que demonstram mais marcadamente essa disfunção são a obesidade e a diabetes mellitus tipo 2 (relacionada a sobrepeso): ambas são exemplos de problemas comuns na atualidade, que foram resultado de uma desencontro entre nossa herança genética e nossos hábitos atuais. A evolução é um processo lento e constante, mas nos últimos séculos os seres humanos mudaram o ambiente que vivem, sua alimentação e hábitos — e nem sempre os genes são capazes de acompanhar essas mudanças. Como nossos antepassados possuíam pouca disponibilidade de alimentos, os genes “econômicos” (no sentido metabólico) foram priorizados no passado, garantindo a sobrevivência dos indivíduos gastando poucas calorias — no entanto, com a dieta rica em calorias, pobre em nutrientes e a grande presença do sedentarismo na vida moderna, esses genes econômicos passaram a ser um empecilho, e o corpo humano não teve como dar conta de toda energia que recebe. Todo exagero e descompasso acaba gerando um desequilíbrio que, muitas das vezes, se torna uma patologia.

Por isso, países com culturas de alto consumo de calorias apresentam forte incidência de complicações como a diabetes, disfunções cardiovasculares e obesidade — não suficiente, essas condições apresentam herdabilidade relativamente alta (no caso da obesidade, de 30 a 40%), indicando que os genes são sim um fator considerável no desenvolvimento delas, mesmo que os hábitos também sejam decisivos para o estabelecimento dessas doenças.

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Entretanto, não foi apenas a nossa relação de hábitos que moldaram as doenças atuais — a interação com diferentes patógenos também foi responsável por muitas respostas fisiológicas e doenças hereditárias que apresentamos hoje. Um exemplo muito interessante tem relação com a prevalência da malária: em algumas regiões do mundo, a malária causada pelo Plasmodium falciparum e Plasmodium vivax é um grave problema de saúde, que historicamente é responsável pela morte de milhares de pessoas todos os anos. Como esse parasita completa seu ciclo de vida nos glóbulos vermelhos do hospedeiro, algumas mutações que alteram essas células e impedem o desenvolvimento do Plasmodium, se mostraram positivas para a sobrevivência dos humanos que habitam locais em que a malária é uma forte pressão seletiva.

A anemia falciforme, que é responsável por dar um formato de foice aos glóbulos vermelhos, e a talassemia (anemia crônica), que gera hemoglobinas com cadeias menores que o normal, são exemplo de enfermidades que impedem que o parasita contamine os eritrócitos e continue com o ciclo da patologia. Ao alterarem características moleculares de células que são essenciais ao desenvolvimento do parasita, essas doenças hereditárias possibilitam uma maior chance de sobrevivência de seus portadores, já que muitas vezes — nos casos em que a malária é um fator ambiental relevante — as consequências dessas mutações são menos sentidas do que os sintomas da malária, principalmente em indivíduos heterozigotos para a característica (que normalmente vão ser assintomáticos ou possuir uma anemia mais leve). Assim, muitos desses genes foram selecionados pelo ambiente, aumentando a prevalência dessas anemias em populações afetadas pela malária.

Nesse mapa, retirado do artigo citado em [2], é possível ver como diferentes lugares do mundo apresentam maior ou menor prevalência de determinadas doenças genéticas — muitas delas estão relacionadas com a dieta das populações, porém a altitude, a interação com microrganismos, temperatura e incidência de luz UV também são fatores que moldaram a herança genética dos indivíduos atuais.

Existem inúmeros exemplos, como alguns esboçados na imagem acima, que explicam o motivo da maior prevalência de alguns distúrbios em grupos étnicos ou ambientes específicos, mostrando como o corpo humano não escapou de forma alguma da seleção natural e da sua moldagem a partir de pressões seletivas, envolvendo fortemente seu ambiente e hábitos. Em tempos de COVID-19, é importante observar que a própria interação com patógenos causadores da gripe, por exemplo, também tornou mais comum que algumas populações hoje apresentem forte incidência de patologias autoimunes. Isso aconteceu devido à seleção de um sistema imune mais sensível, que garantia a sobrevivência daqueles que entravam em contato com o patógeno — essa característica durante uma epidemia pode ser extremamente vantajosa, mas na ausência de patógenos pode significar que você provavelmente vai ser uma pessoa que vive tendo aquelas rinites chatas, ou até disfunções mais graves.

Além disso, é interessante notar que alguns quadros que hoje nos preocupam fortemente, como Alzheimer e problemas cardiovasculares, não foram eliminadas das populações pelo fato de que elas não possuem relação com a sobrevivência da espécie — como são doenças que se desenvolvem, na grande maioria das vezes, muito após o ápice reprodutivo (que ocorre aproximadamente até os 40 anos), elas podem passar despercebidas pela seleção natural, que opera principalmente na reprodução e perpetuação da espécie. Assim, muitas dessas condições podem ser terríveis para nós, que queremos viver o máximo de tempo possível e com a melhor qualidade de vida, mas para a natureza e presença da espécie no ambiente não é algo tão relevante.

Muitas dessas doenças e condições que possuem uma forte carga genética e marcas da evolução são hoje alvo de estudos que buscam tratamentos e terapias diversas para elas, tentando aumentar ainda mais a qualidade de vida da nossa espécie e até mesmo de outras. Mesmo que a natureza tenha seu tempo e uma força inquestionável, as habilidades humanas permitiram maiores chances de sobrevivência da espécie, com tentativas constantes de driblar problemas de saúde, sejam eles genéticos ou não — e é nisso que novas áreas de estudo, como a medicina evolutiva, contribuem.

Por fim, observando todos esses padrões de doenças e trocas, a medicina evolutiva pode ajudar a entender a origem e também o tratamento de muitos desses distúrbios, principalmente através do estudo dos mecanismos de compensação (os trade-offs, mencionados no início do texto). Tudo isso colabora para a compreensão do nosso passado e presente, enquanto é possível construir o futuro dos tratamentos e das abordagens terapêuticas, unindo a prática da clínica e os conhecimentos moleculares, genéticos e familiares. A herança é uma das coisas que molda o que somos — assim, entendê-la pode ajudar a identificar nossas fragilidades, forças e onde podemos melhorar, proporcionando maior qualidade de vida e segurança nos tratamentos.

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