Inteligência Artificial e Cardiologia: uma união que veio para ficar?

Nesta publicação, vamos entender um pouco sobre como a Inteligência Artificial pode ser útil no diagnóstico de problemas cardiovasculares.

Higor Souza Cunha
ARGO — Divulgação Científica
7 min readApr 10, 2021

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Figura 1. União das máquinas inteligentes com os humanos no contexto cardiovascular. Fonte [1].

Destaques

• A produção científica envolvendo aplicações de Inteligência Artificial em Cardiologia vem crescendo bastante, segundo dados do PubMed;

• Uso de Inteligência Artificial permitiu a identificação de seis diferentes tipos de alterações eletrocardiográficas com precisão igual ou superior aos realizados por médicos residentes e estudantes;

• Inteligência Artificial aplicada em imagens de retina permitiu a definição, com pouca margem de erro, a idade, o gênero, a dosagem de hemoglobina glicada e o índice de massa corporal do paciente, bem como se ele era ou não fumante.

Introdução

Em 2021 estamos vivendo no Brasil uma crise de saúde pública agravada pelo novo coronavírus desde 2020. O vírus da COVID-19, por sua vez, além das complicações envolvendo problemas respiratórios, também propicia agravamentos cardiovasculares [2], que segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde) é a principal causa de morte no mundo nos últimos 20 anos [3]. Em 2017 cerca de 56 milhões de pessoas morreram em todo o mundo, sendo 31.8% (17.79 milhões) dos óbitos atrelados às doenças cardiovasculares. A seguir é apresentado um gráfico mostrando um comparativo percentual entre as doenças mais letais:

Figura 2. As 10 doenças mais letais no mundo em 2017. Porcentagens do total de mortes naquele ano. Fonte: adaptado de [4].

Tal contexto está sendo tema recorrente no mundo científico, pois a grande dúvida é como frear a letalidade dessas doenças cardiovasculares, principalmente levando em consideração as tendências do sedentarismo e maus hábitos alimentares presentes em muitos países. O âmbito da Inteligência Artificial (IA) pode ser um caminho para frear tal letalidade e podemos perceber através da Figura 3 o volume das produções científicas nesse tema.

Figura 3. Produção científica envolvendo aplicações de Inteligência Artificial em Cardiologia. Cresce o número de artigos científicos obtidos no portal PubMed (* até 08/06/2020) a partir da pesquisa com os termos artificial intelligence ou machine learning e cardiology. Fonte: adaptado de [5].

A partir desse contexto apresentado passa a ser interessante entender, pelo menos em sua essência, como a IA pode ser útil no campo da Cardiologia, uma vez que atualmente há um investimento interessante em tal vertente tecnológica. Para isso, vamos nos focar em dois escopos particulares do tema.

Eletrocardiograma— ECG

O ECG é um exame médico feito com um aparelho chamado Eletrocardiógrafo, que ligado via eletrodos ao corpo humano reproduz graficamente a atividade elétrica dos batimentos cardíacos de uma pessoa. Olhando para a Figura 4 temos o ECG de um coração normal, onde há um ciclo completo representado por ondas P, Q, R, S, T, com duração total menor do que 0,8 segundos. Neste ciclo se distingue uma onda P que corresponde à contração dos átrios (câmera coletora, onde há a chegada do sangue das diversas partes do corpo) e um consecutivo complexo QRS determinado pela contração dos ventrículos (garantem o bombeamento do sangue para outros locais). Conclui o ciclo uma onda T.

Figura 4. Exemplo de eletrocardiograma. Fonte [6].

Para quem nunca teve a oportunidade de ver o que são os átrios e ventrículos em um coração, a Figura 5 ilustra bem o contexto.

Figura 5. Vista em corte de um coração. Fonte: adaptado de [7].

De acordo com o fisiologista José Eduardo Krieger, diretor do Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular do InCor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP) e professor do Departamento de Cardiopneumologia da FMUSP, o eletrocardiograma é um exame barato e muito utilizado, mas a interpretação pode ser mais difícil do que aparenta [5].

Em virtude da dificuldade levantada pelo professor Krieger, é natural a proposição de soluções que auxiliam no diagnóstico. A equipe do Projeto CODE (Clinical Outcomes in Digital Electrocardiology), formada por pesquisadores do Centro de Telessaúde do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG), desenvolveu um projeto de leitura automatizada do eletrocardiograma para o diagnóstico de doenças cardíacas. O trabalho teve financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e colaboração das universidades de Glasgow, na Escócia, e Uppsala, na Suécia, cuja pesquisa foi publicada na revista Nature Communications através do artigo Automatic diagnosis of the 12-lead ECG using a deep neural network (Diagnóstico automático do ECG de 12 derivações usando uma rede neural profunda - artigo presente aqui [8]).

A análise possibilitou o reconhecimento de padrões e a identificação de seis diferentes tipos de alterações eletrocardiográficas com precisão igual ou superior aos realizados por médicos residentes e estudantes. O modelo de rede neural profunda (saiba mais sobre o conceito aqui [9]) foi treinado, validado e testado com mais de 2 milhões de exames rotulados pelo HC-UFMG, abrangendo mais de 1.5 milhões de pacientes. Dentre os padrões aprendidos pode-se citar “sem anormalidades”, “fibrilação atrial” [10] e a “taquicardia sinusal” [11], como é visualizado na imagem abaixo:

Figura 6. Padrões reconhecidos pelo Projeto CODE. Fonte: adaptado de [8].

Previsão de risco através da retina

O professor Krieger citado na seção anterior também fez uma observação quanto às novas vertentes de pesquisa no InCor. Dentre elas a mais avançada está no âmbito do processamento de imagens, cujo atual desafio, segundo o professor, é o desenvolvimento de algoritmos de predição de risco que levem em conta características particulares dos indivíduos [5].

Nos EUA já existem iniciativas nesse escopo, como o método para prever sinais de risco cardiovascular a partir de exames de retina criado por cientistas da Google Research, da startup Verily Life Sciences e da Universidade Stanford (o artigo publicado se encontra aqui [12]). O trabalho teve como base a ferramenta do Deep Learning (saiba mais sobre o conceito aqui [9]), cujo sistema foi treinado com imagens de fundo de olho de mais de 284 mil pacientes dos bancos de dados UK Biobank, do Reino Unido, e EyePACS, dos Estados Unidos. Para a validação do modelo de aprendizado profundo utilizaram imagens de mais de 13 mil pacientes, também dos bancos de dados supracitados. Para saber mais a fundo acerca das métricas de performance e outros procedimentos realizados no trabalho, sugere-se a leitura do artigo presente aqui [12].

Com a gama de imagens disponíveis o sistema aprendeu a distinguir olhos saudáveis daqueles com alterações nos vasos sanguíneos visíveis no fundo do olho, indício de problema cardiovascular, como pode-se observar abaixo alguns exemplos de predição:

Figura 7. Predição de dados pessoais através das imagens da Retina. A primeira imagem é a amostra presente nos bancos de dados utilizados, enquanto as demais imagens em preto e branco evidenciam, através dos traços esverdeados, as regiões utilizadas pela rede neural para fazer a predição. Fonte [5, 12].

A título de curiosidade, tem-se na Figura 8 uma vista em corte do olho humano para a localização da retina, foco do trabalho.

Figura 8. Vista em corte do olho humano. Destaque para a Retina em vermelho. Fonte [13].

O objetivo do grupo de pesquisa era determinar os sinais de risco através de um método rápido, barato e não invasivo. O algoritmo foi capaz de definir, com pouca margem de erro, a idade, o gênero, a dosagem de hemoglobina glicada (um marcador de diabetes) e o índice de massa corporal do paciente, bem como se ele era ou não fumante.

Conclusão

A partir dos dois temas apresentados nota-se que a união da IA com a Cardiologia definitivamente veio para ficar de vez!! As possibilidades de aplicação são as mais variadas possíveis, desde o auxílio em exames, como no caso do ECG, quanto na implementação de novas metodologias, como a análise da retina do indivíduo. E o mais interessante de tudo é que essa tecnologia também está sendo desenvolvida no Brasil, sendo o InCor um dos principais centros de pesquisa na área. A queda na letalidade das doenças cardiovasculares já é algo palpável e estamos caminhando a largos passos para isso.

Gostou desse texto? Leia também um dos nossos posts intitulado “Como a Inteligência Artificial pode auxiliar na detecção de câncer de mama?” clicando aqui. Continue seguindo o nosso Medium para receber informações desse tipo e de outros temas interessantes! Acompanhe também o ARGO no Facebook, Instagram, Linkedin e Twitter!

Referências

[1]https://www.whatnextglobal.com/post/artificial-intelligence-and-cardiology

[2] https://www.drakeillafreitas.com.br/coronavirus-e-doencas-cardiovasculares/

[3]https://www.paho.org/pt/noticias/9-12-2020-oms-revela-principais-causas-morte-e-incapacidade-em-todo-mundo-entre-2000-e#:~:text=Doen%C3%A7a%20card%C3%ADaca%20continua%20sendo%20a,mundo%20nos%20%C3%BAltimos%2020%20anos.

[4]https://pebmed.com.br/as-dez-principais-causas-de-morte-no-mundo/

[5]https://revistapesquisa.fapesp.br/inteligencia-artificial-a-favor-do-coracao/

[6]PSI-3260 Aplicações de Álgebra Linear — Experiência 9: Método dos Mínimos Quadrados 2 — Parte Computacional

[7]https://www.mdsaude.com/cardiologia/fibrilacao-atrial/

[8] https://www.nature.com/articles/s41467-020-15432-4

[9] https://venturus.org.br/machine-learning-para-leigos/

[10] https://www.msdmanuals.com/pt-br/profissional/doen%C3%A7as-cardiovasculares/arritmias-e-doen%C3%A7as-de-condu%C3%A7%C3%A3o/fibrila%C3%A7%C3%A3o-atrial-fa#:~:text=Fibrila%C3%A7%C3%A3o%20atrial%20%C3%A9%20ritmo%20atrial,diagn%C3%B3stico%20%C3%A9%20realizado%20por%20ECG.

[11] https://www.rededorsaoluiz.com.br/doencas/taquicardia

[12] https://www.nature.com/articles/s41551-018-0195-0

[13] https://www.provisu.ch/pt/component/content/article.html?id=309:descolamento-da-retina

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