Neuralink e as Interfaces Cérebro-Máquina

Leia sobre o passado, presente e futuro da neuroengenharia

Como se o ano de 2020 não pudesse contar com eventos mais estranhos e surpreendentes do que a pandemia da COVID-19 e o Departamento de Defesa dos EUA divulgando vídeos oficiais de OVNIs (Objetos Voadores Não Identificados), Elon Musk, o bilionário sonhador, CEO da SpaceX e que dispensa apresentações, decidiu compartilhar com o mundo os recentes avanços da sua empresa de neurotecnologia, a Neuralink.

Interface cérebro máquina desenvolvida pela Neuralink. Fonte: Neuralink/Reprodução

Destaques

• Neuralink, empresa de neurotecnologia de Elon Musk, trabalha pela integração do cérebro humano a celulares e computadores através de interfaces cérebro-máquina

• Meio acadêmico vê com pouco otimismo as expectativas de Musk para o futuro da tecnologia

• Miguel Nicolelis, cientista brasileiro, foi um dos pioneiros no desenvolvimento de interfaces cérebro-máquina

• Interfaces cérebro-máquina que usam implantes podem ser mais precisas do que as que usam eletroencefalografia

• Experimento do início dos anos 2000 já era capaz de controlar um braço robótico através dos pensamentos de um macaco

Neuralink

Se você, assim como eu, se impressiona sempre que ouve falar dos planos de colonização de Marte da SpaceX, prepare-se para ter uma surpresa ainda maior com os planos da Neuralink. O site de Tim Urban, Wait But Why, faz um exercício de comparação interessante: se voltássemos 50.000 anos no passado e nos comparássemos com um homo sapiens no início da sua longa jornada de ascensão tecnológica, perceberíamos diferenças brutais no modo com que agimos e realizamos nossas tarefas diárias, mas mesmo com todas essas diferenças nós ainda seríamos bastante parecidos, biologicamente falando, tirando os pelos e as ferramentas tecnológicas nós seríamos essencialmente iguais. O fato é que ao longo de sua escalada tecnológica a nossa espécie desenvolveu tecnologias que mudam o que fazemos, e o plano de colonizar Marte até 2024 da SpaceX representa mais um passo nessa mesma jornada, mas o que a Neuralink está propondo é dar um passo em direção a uma jornada completamente nova, é mudar quem somos, o que é ser humano.

A proposta da Neuralink é integrar o cérebro humano às máquinas presentes no nosso dia a dia, como computadores e celulares, através de uma BMI (Interface Cérebro-Máquina, do inglês Brain-Machine Interface). Uma BMI é uma tecnologia que pode interagir com neurônios, lendo e escrevendo informação ao ser conectada diretamente ao cérebro de uma pessoa. As aplicações dessa tecnologia, segundo Musk, são diversas e vão desde a área médica, com a possibilidade de pessoas com paralisia recuperarem os movimentos, até a integração do cérebro com inteligência artificial e a gravação de memórias.

Apesar de toda a atenção que a apresentação da Neuralink conseguiu, o meio acadêmico não ficou muito impressionado com os resultados obtidos pela empresa. Grande parte dos especialistas na área de neurociência e neuroengenharia classifica as possibilidades levantadas por Musk para o futuro da sua BMI como pura ficção científica. Não se tem qualquer indicativo de que ler as memórias de uma pessoa diretamente do seu cérebro, por exemplo, é algo possível, existem dificuldades como a complexidade da representação das memórias no neocórtex e a forma analógica com que os neurônios se comunicam, isso torna a aplicação impraticável. Mas calma, não se desanime ainda, as aplicações médicas não só são realmente tangíveis, como também têm sido cada vez mais estudadas nas últimas décadas. O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis é referência no assunto, veja a seguir parte de sua extensa produção científica.

Origem das Interfaces Cérebro-Máquina

Miguel Nicolelis e John Chapin foram pioneiros no estudo de circuitos neurais através de populações de neurônios, até então a prática mais comum era o estudo de neurônios individuais. Essa abordagem inovadora deu início a uma nova forma de se enxergar e interagir com o cérebro humano, ela permitiu que uma série de experimentos disruptivos fossem feitos, decodificando a atividade elétrica do córtex motor de animais e usando essa informação para controlar máquinas, um desses experimentos, por exemplo, foi capaz de controlar um braço mecânico através dos pensamentos de um macaco. As Interfaces Cérebro-Máquina (ou BMI, Brain-Machine Interface, termo cunhado por Nicolelis e Chapin) são dispositivos capazes de decodificar a atividade elétrica do cérebro e usar essa informação para controlar dispositivos eletrônicos, mecânicos ou virtuais. Veja a explicação do próprio Nicolelis:

Tipos de Interfaces Cérebro-Máquina

Dois tipos de BMIs são muito usados em laboratórios mundo afora: um que se conecta diretamente com o cérebro através de um implante, tipo usado pela Neuralink e também nos experimentos citados acima; e outro que monitora a atividade cerebral por meio de um eletroencefalograma (EEG), técnica amplamente utilizada na medicina moderna que capta sinais elétricos com eletrodos colocados na cabeça. Mas se existe uma técnica amplamente utilizada e que é capaz de monitorar a atividade cerebral de alguém de uma forma não invasiva, por que é que a empresa de Musk optou pela alternativa que requer uma cirurgia para ser implantada?

Pessoa fazendo um eletroencefalograma. Fonte: neuroelectrics

Bom, a questão não é tão simples assim, o eletroencefalograma é o registro da atividade conjunta de milhões de neurônios de uma só vez, o que torna a técnica pouco precisa. Uma boa analogia, feita no site da Neuralink, é imaginar uma pessoa do lado de fora de um estádio onde está acontecendo um jogo com as arquibancadas lotadas. A única informação que a pessoa do lado de fora do estádio recebe é a dos gritos da multidão de milhares de pessoas que estão assistindo ao jogo, essa pessoa pode ter uma boa noção sobre o que está acontecendo em linhas gerais na partida, como quando uma grande jogada acontece, mas ela é incapaz de entender os detalhes, como o placar do jogo ou se gritos de felicidade são por causa de uma grande defesa ou uma ótima oportunidade de ataque. Algo parecido acontece com o EEG, é difícil interpretar detalhes da informação coletada, o que faz do implante uma alternativa muito melhor para as BMIs.

Aplicação de uma Interface Cérebro-Máquina

Carmena et. al. PLoS 2003 [1]

Essa imagem foi publicada em um artigo científico de 2003 que descreve os resultados obtidos em um experimento no qual um macaco é capaz de aprender a agarrar objetos virtuais controlando um braço robótico por uma BMI. A imagem mostra de forma esquemática o sistema de controle do braço robótico. A caixa ligada à cabeça do macaco na imagem é responsável por fazer a aquisição dos dados referentes à atividade de uma população de neurônios, esses dados são tratados e enviados para um servidor que aplica modelos matemáticos para extrair parâmetros motores como posição e velocidade, parâmetros que servem para alimentar os controladores do braço robótico para mover um cursor. O loop é fechado pelo feedback visual fornecido pelo monitor que mostra o movimento do cursor. Em outras palavras o macaco que protagoniza o experimento está controlando um braço robótico com sua mente usando pensamentos parecidos com os que usa para controlar o próprio braço.

Por fim…

Existe um grande abismo entre o que nós, enquanto espécie, sonhamos em fazer e o que somos de fato capazes de fazer, mas muitas vezes a ciência atua aproximando os limites desse abismo. Embora os ambiciosos planos de Musk e outros entusiastas da tecnologia ainda estejam mais próximos da ficção científica do que da realidade, é bastante positiva a atenção que a Neuralink tem trazido para a neuroengenharia e a neurociência no geral, cada vez mais pessoas conhecem e valorizam a área, resta à Academia aproveitar essa atenção e mostrar os extraordinários avanços que tem tido nos últimos anos.

Deixo a quem interessar o vídeo da apresentação de Miguel Nicolelis no Nokia Bell Labs sobre os últimos avanços na sua pesquisa até 2019. No vídeo ele fala inclusive sobre o Projeto Andar de Novo, responsável por criar o exoesqueleto utilizado por um jovem paraplégico para dar o chute inicial da Copa do Mundo de 2014 no Brasil:

Referências:

[1] Carmena JM, Lebedev MA, Crist RE, O’Doherty JE, Santucci DM, Dimitrov DF, et al. (2003) Learning to Control a Brain–Machine Interface for Reaching and Grasping by Primates. PLoS Biol 1(2): e42. https://doi.org/10.1371/journal.pbio.0000042, acessado em 09/09/2020

[2] https://neuralink.com/, acessado em 09/09/2020

[3] https://super.abril.com.br/blog/bruno-garattoni/demonstracao-da-neuralink-impressiona-mas-tambem-deixa-perguntas-sem-resposta/, acessado em 09/09/2020

[4] https://www.youtube.com/watch?v=IKSVgja-AYU, acessado em 09/09/2020

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