O capacitismo na área da Saúde

Dia 03 de dezembro foi o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência e, para além de estudarmos a história da luta do movimento PCD, também é necessário buscar entender como o preconceito contra pessoas com deficiências está presente na vida de todos nós. O que é “normal”? O que é deficiência? Como uma sociedade capacitista forma seus profissionais de saúde? Refletir sobre esses e outros questionamentos é vital.

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Introdução

Ter uma deficiência, independentemente de qual tipo ela seja, não é e não deveria ser entendido como um problema. O que, na realidade, é problemático são os inúmeros empecilhos que a própria sociedade impõe diariamente para as pessoas com deficiência (PCDs). Além de serem atravessadas por muitos outros marcadores sociais da diferença (como gênero e raça), PCDs acabam tendo que enfrentar barreiras socialmente construídas que afetam todos os aspectos de suas vidas: desde o exercício de sua cidadania, passando pelos seus relacionamentos, até o acesso à saúde e à qualidade da assistência que recebem [1].

Pequeno dicionário

Antes de continuarmos o texto, segue uma breve conceituação de alguns termos importantes que já foram mencionados aqui no texto e que certamente vão se repetir:

  • Deficiência e PCD

PCD: sigla que significa Pessoa Com Deficiência;

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará:

I — os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;

II — os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;

III — a limitação no desempenho de atividades; e

IV — a restrição de participação. [2]

Ressaltando a dimensão social da deficiência, cabe apresentar também uma importante diferenciação entre esse termo e o termo “doença”, que está presente no guia “Mulheres com deficiência: Garantia de Direitos para Exercício da Cidadania”, elaborado pelo Coletivo Helen Keller [3]:

“Enquanto a doença é uma condição de perda da saúde, resultante do acometimento do organismo humano, a deficiência é a restrição de participação social que decorre da interação entre a pessoa com alguma limitação e as barreiras oriundas das atitudes e do ambiente. Esse novo conceito de deficiência deve ser entendido fora do aspecto biológico e individual, pois a pessoa com deficiência faz parte da diversidade humana e se expressa, se movimenta e interage com o mundo mediante formas diferentes, todavia com os mesmos direitos das demais.”

  • Capacitismo

De acordo com Adriana Dias [4]:

“Capacitismo é a concepção presente no social que lê as pessoas com deficiência como não iguais, menos aptas ou não capazes para gerir as próprias vidas, e segundo Campbell (2001, 44), capacitismo (ableism), define-se como: “uma rede de crenças, processos e práticas que produz um tipo particular de compreensão de si e do corpo (padrão corporal), projetando um padrão típico da espécie e, portanto, essencial e totalmente humano. A deficiência para o capacitista é um estado diminuído do ser humano.”

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Um retrato do problema

A formação em saúde ainda é muito pautada em um modelo meramente biomédico, que pouco considera a dimensão social dos fenômenos [5]. Nesse sentido, um corpo perfeito é aquele livre de diferenças ou doenças e que apresenta o funcionamento dentro de um padrão de normalidade. Por essa razão, muitas vezes, profissionais da área enxergam pessoas com deficiência como indivíduos que precisam ser “concertados”, ainda que para isso os mesmo sejam submetidos a diversos procedimentos invasivos (que geralmente não correspondem à melhor prática de cuidado). Assim, os trabalhadores exercem um domínio sobre os corpos de seus pacientes, limitando até mesmo o poder de escolha dos mesmos. Durante os atendimentos, quando o foco é na deficiência e não no ser humano que ali se encontra, há um processo de invisibilização do sujeito. Enquanto o SUS argumenta que é imperioso entender a pessoa na sua integralidade (ou seja, ter conhecimento de em qual realidade ela se encaixa), os prestadores de assistência focam apenas em uma das inúmeras características que a pessoa com deficiência apresenta.

Outrossim, as experiências em saúde também envolvem: a possibilidade de acessar as instituições; passar pelos processos burocráticos que podem demandar muito tempo e energia de quem os enfrenta, ainda que PCDs tenham preferência nos atendimentos; falta de profissionais preparados e especializados [6].

As próprias atividades que temos realizado dentro do ARGO estão expondo desigualdades que afetam diretamente PCDs e os serviços de saúde: estamos trabalhando com um projeto de próteses e órteses e, na grande maioria das entrevistas que realizamos com especialistas até agora, nos foi relatado o fato de que empresas desenvolvedoras e fornecedoras desses equipamentos estão majoritariamente localizadas na região sudeste. Em contrapartida, os seus usuários em todo o Brasil.

Ademais, tornar-se um profissional da saúde também pode ser muito difícil para PCDs, isso porque as universidades e as instituições de saúde não são pensadas para receber alunos e trabalhadores que tenham deficiências. O relato de Andrea Chaves, no texto da Agência Brasil [7], nos confirma isso:

“Eu só enxergo de um olho e em Brasília fui a primeira mulher com deficiência a tripular uma viatura do Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência]”.

Em suma, o capacitismo se expressa de diferentes formas na área da saúde. A assistência que devemos oferecer precisa ser sinônimo de acolhimento e não de violência. Para transformarmos a realidade de nossos serviços, dentre muitas possibilidades, precisamos contar com o apoio da tecnologia e da inovação.

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E como a tecnologia entra nisso?

Hugh Herr [8], engenheiro, pesquisador do MIT e homem com deficiência, afirma que um humano nunca estará “quebrado”. Quem está quebrada é a tecnologia, ela que está inadequada e que precisa ser pensada para suprir as necessidades humanas. Ainda, de acordo com a fisiatra Linamara Rizzo Battistella [9]:

“O compromisso de dar autonomia às pessoas, no limite de suas potencialidades, deve ser o objetivo de todos os agentes envolvidos no processo da inovação, do desenvolvimento econômico e na formulação de normas e regulamentos nos âmbitos público e privado”.

Ou seja, a tecnologia pode e precisa ser utilizada para: a melhoria de terapias que já são empregadas hoje em dia, como a arte terapia e equoterapia; para o desenvolvimento de novos equipamentos que auxiliem as pessoas com deficiência a realizar atividades que antes tinham dificuldades; melhorar e acelerar os processos de saúde e capacitar os profissionais.

O que pode ser feito?

  1. Estudar sobre capacitismo. Entender quais das nossas ações são capacitistas e buscar ativamente maneiras de mudar os nossos próprios comportamentos.
  2. Incluir, nas grades curriculares das graduações na área da saúde, disciplinas com caráter obrigatório, baseadas em novas metologias de ensino, que problematizem e completem a formação dos profissionais. Exemplos: ensino de LIBRAS [10]; matérias que discutam sobre as múltiplas deficiências, sobre as implicações biopsicossociais do capacitismo e outras possibilidades [11].
  3. Investir em inovação e pesquisa, para que novas tecnologias que garantam autonomia, segurança e cuidado possam ser desenvolvidas.
  4. Exigir e possibilitar não somente acessibilidade, mas também permanência: pessoas com deficiência não podem ser privadas de participação social porque instituições são pensadas e desenvolvidas com base em padrões de “normalidade” que não existem. Ao ocuparem espaços que por muito tempo lhes foram negados, é fundamental que elas possam permanecer neles.

Recomendações

  • Você nunca ouviu falar sobre capacitismo mas depois desse texto quer aprender mais sobre o assunto? Conheça e siga produtores de conteúdo, acadêmicos e coletivos que estão sempre falando sobre essa questão: Maria Paula Vieira, Anahí Guedes de Mello, Luciana Viegas, Victor Di Marco, Galeria PCD, Fiona K. Campbell, Ivan Baron, Fatine de Oliveira.
  • Texto: “Desmistificando erros do capacitismo”. Disponível em: https://www.ifpb.edu.br/assuntos/fique-por-dentro/desmistificando-erros-do-capacitismo.
  • Documentário: “Crip Camp — Revolução pela Inclusão”, disponível na Netflix.
  • Livro: “O que é deficiência”, escrito por Debora Diniz.
  • Livro: “A relação íntima e social da mulher com deficiência”, escrito por Ana Beatriz A. Valota.
  • Conheça o trabalho do Coletivo Helen Keller. Link para o perfil no Instagram: https://www.instagram.com/coletivohelenkeller/?hl=en.

Obrigada por ler até aqui! Boas festas para você e sua família! :)

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Referências

[1] MARQUES, C. Implicações políticas da institucionalização da deficiência. Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/RBtVW8xhfLKghrGzcnb96bq/?lang=pt.

[2] Governo Federal. Lei n°13.146, de 6 de julho de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm#art124>.

[3] Coletivo Helen Keller. Mulheres com deficiência: Garantia de Direitos para Exercício da Cidadania. Disponível em: <https://www.crmpr.org.br/uploadAddress/Guia-Feminista-Helen-Keller[4446].pdf>.

[4] DIAS, A. Por uma genealogia do capacitismo: da eugenia estatal à narrativa capacitista social. In: Anais do 1o Simpósio Internacional de Estudos sobre a Deficiência: São Paulo, 2013.

[5] MELLO, A. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/csc/a/J959p5hgv5TYZgWbKvspRtF/?lang=pt>.

[6] CASTRO, A. et al. Barreiras ao acesso a serviços de saúde à pessoa com deficiência no Brasil: uma revisão integrativa. Disponível em: <https://www.revistas.uneb.br/index.php/saudecoletiva/article/view/11351/8015>.

[7] Ludmilla Souza. Capacitismo: expressões são discriminatórias com quem tem deficiência. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-09/capacitismo-expressoes-sao-discriminatorias-com-quem-tem-deficiencia>.

[8] Hugh Herr. A nova biônica que nos permite correr, escalar e dançar. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=CDsNZJTWw0w>.

[9] Linamara Rizzo Battistella. Há urgência no desenvolvimento de tecnologias para garantir mobilidade. Disponível em: <https://www.linkedin.com/pulse/h%C3%A1-urg%C3%AAncia-desenvolvimento-de-tecnologias-para-linamara-battistella?trk=public_profile_article_view>.

[10] SANTOS, K. et al. A democratização do acesso à saúde em LIBRAS: um relato de experiência. Disponível em: <https://periodicos2.uesb.br/index.php/recuesb/article/view/7856/5373>

[11] ALMEIDA, A., FRANÇA, L., MELO, A. Diversidade humana e interseccionalidade: problematização na formação de profissionais da saúde. Disponível em: <https://www.scielosp.org/article/icse/2021.v25/e200551/pt/>.

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