#2 — A Diversão Importa?

Jairo B. Filho
Diário de um Game Designer
4 min readFeb 7, 2018

Há um bom tempo atrás, nos tempos em que a Dragão Brasil era encontrada em praticamente toda banca de jornais (e, ao meu ver, o tempo em que ela realmente foi necessária), eu me deparei com uma entrevista com um figurão da falida White Wolf, e com a seguinte frase:

“Se você não está se divertindo, com certeza está jogando errado”.

Eu guardei essa frase para mim desde então, por motivos diferentes com o passar dos anos. Primeiro, como Narrador, eu a transformei em um mantra — afinal, tomava para mim grande parte da responsabilidade perante os sentimentos do grupo. Algo que, vamos combinar, muitos jogos narrativos dos anos 90 trabalhavam (se não todos).

Mas, conforme meu contato com os jogos se modificou, passei a rever essa frase com dúvidas. Afinal, um jogo precisa mesmo ser divertido? Esse é seu real propósito?

Eu acabei notando que não. E vou trabalhar minha justificativa neste artigo.

Mudando a Perspectiva

Antes de colocar minha posição sobre a diversão, preciso compartilhar com vocês uma impressão que tenho já faz algum tempo, mais evidente nos jogos digitais: à medida que novas tecnologias são compartilhadas na criação de games, as produções tornam-se mais profundas; não em termos gráficos e/ou mecânicos, mas em propósito. Cada jogo passava a trazer um conteúdo diluído em seu formato — algo que pudesse afetar os jogadores de alguma forma.

O jogo Journey é um excelente exemplo disso. De como um jogo consegue mexer profundamente com seus jogadores.

A partir daí, começaram as comparações entre games e filmes, ou até mesmo com a literatura, por exemplo. Sobre como tais conteúdos e lições de moral podiam ser trabalhados com a mecânica singular de participação dos jogos. Ambos podiam não apenas entreter sua audiência, como também chocá-la, ou comovê-la.

Assim sendo, jogos não são um canal de entretenimento, como muitos pensam; em vez disso, eles são uma linguagem — um canal de comunicação, de transporte de conteúdos de uma pessoa (seus autores) para outras (o seu público).

Guarde bem esta frase, leitor: jogos são linguagem, e não entretenimento.

Voltando aos Jogos Narrativos…

Diante de tudo que apontei até aqui, e complementando com o artigo anterior, acho que fica mais fácil chegar à conclusão de que cada jogo narrativo possui o seu cerne, uma premissa e/ou informação que o justifique. Enxergue cada jogo como uma carta, do seu autor para os jogadores, escrita em um bem resolvido “código” de mecânicas.

E aqui, volto a frisar: o objetivo do jogo é ser compreendido por seus jogadores.

Monsterhearts é um exemplo perfeito disso: um jogo denso, sobre os dilemas de monstros adolescentes… e repleto de lições e questionamentos morais.

Outro excelente exemplo é Night Witches, um jogo que aborda diversos temas: a Guerra, o machismo e a independência.

Em A Fita, vemos o pior dos medos da humanidade, sob o aspecto “caseiro e sem edições” do estilo cinematográfico Found-Footage.

E absorver ou não a premissa de um jogo nada tem a ver com se divertir com ele; tanto é que, remontando aquela falácia máxima da “Regra de Ouro” (“O Mestre e seus jogadores são maiores que o próprio jogo”, blá-blá-blá), é bem possível para o grupo ignorar o jogo em sua essência — ou pior, picotar seu corpo de regras, e seguir com a narrativa como bem desejarem. GURPS, Storyteller e Dungeons and Dragons que o diga, né?

Em Vez de Diversão, a Palavra na verdade é Outra…

Se você deseja apenas se divertir, como já coloquei agora pouco, pode escolher qualquer jogo; o resultado provavelmente será o mesmo, porque a responsabilidade da diversão pode ser direcionada às expectativas do grupo de jogadores, e não ao jogo em si.

Agora, se você deseja desvendar o jogo, abraçando suas regras e proposta, você na verdade deseja a fruição dele. “Ah, mas Jairo… diversão e fruição são sinônimos”, você provavelmente vai responder. Não é bem assim.

Diferente de “gerar diversão”, tomo a fruição como é tomada em relação à arte: a apropriação de significados de forma satisfatória e prazerosa. É algo que pode vir a gerar diversão, ao mesmo tempo que pode provocar outras sensações — do mesmo modo que você assiste um filme de terror para sentir a adrenalina, ou um drama para se comover. É algo que pode gerar prazer, sem no entanto ser entretenimento. E assim também podem ser os jogos narrativos — os independentes, aliás, já o são há um bom tempo.

Portanto, caro leitor, se você vai escrever um jogo, pense no que deseja transmitir (sua Experiência, lembra?) e a delimite com um propósito: entre divertir pura e simplesmente, ou transmitir algo mais por suas páginas e mecanismos. Agora, se você se depara com um jogo novo, aconselho a buscar sempre pela fruição deste. Te garanto que mesmo a leitura será bastante diferenciada deste ponto em diante…

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Jairo B. Filho
Diário de um Game Designer

Game Designer independente, fundador do selo Jogos à Lá Carte e entusiasta de pesquisas e boas conversas.