ravi freitas
3 min readDec 15, 2014

Aquela palavra

Segundos antes de entrar no palco eu quis olhar pro seu rosto uma última vez. A peça estava com fama de amaldiçoada. Precisava fumar mais um cigarro, beber mais um gole de cachaça. Queria comer aquele feijão que minha mãe fazia quando eu era guri, mas agora é tarde.

Mas eu realmente precisava olhar pra você por uma última vez antes de entrar no palco. A sua beleza fascinante, sua pele alva como a neve e os dentes meio tortos faziam você parecer uma londrina. Não que sua beleza venha disso: nunca fui para a Inglaterra mas sei que lá deve ter gente feia na mesma porcentagem que tem aqui. Você simplesmente era magnífica. Se eu for pra algum lugar depois dessa peça, que seja o inferno, por que tamanha beleza é uma injustiça tão grande que só o Diabo teria coragem de afrontar a natureza desse jeito.

Mas sim, eu realmente precisava ver tua beleza profana de tão angelical uma última vez antes de entrar no palco. E tudo por causa daquela palavra, a primeira que continha a nova letra descoberta. E lá estava eu, prestes a dizê-la. Não exatamente prestes, era um pouco mais pra frente da encenação. Por que quiseram usar aquela letra na peça? Já não bastavam os cientistas arrependidos por essa descoberta? Sabe aquela frase de Einstein sobre a burrice humana? É, eu sei que é uma bosta, mas bem que se encaixaria aqui se eu lembrasse direitinho.

A palavra era realmente assassina. Por quê eu aceitei esse papel? Quis reconhecimento, achei que sobreviveria. Burro. Burro, burro, burro. Muitos foram levados por ela: 4 protagonistas que proferiram a palavra, 6 coadjuvantes que disseram ou ouviram, 9 figurantes que não taparam os ouvidos, 5 diretores (um por ter escrito, três por terem lido e um por ter tentado apagar -valeu a tentativa, Marcelo, nunca te esqueceremos-), 1 assistente de palco que sonhava em ser diretor e leu o roteiro (a curiosidade matou mais que um simples gato, descanse em paz César) e 1 pintor de cenários teatrais que tentou escrever a palavra numa placa, mas que graças a Deus não conseguiu completar.

E a audiência? Ah, meu, nem se fala. A plateia toda foi afetada. Mais de 400 espectadores já morreram. Até agora nenhum crítico de teatro sobreviveu, o que é um ponto positivo. Em compensação, as pessoas da plateia que sobreviveram ficaram loucas, surdas ou cegas, o que provavelmente significa que muito mais críticos de teatro estão por vir.

Mas é, observei sua beleza filha da puta por uma última vez antes de entrar no palco. Sempre lembro da sua boquinha beijando minha bochecha e você me apertando, dizendo que iria me explodir. Eu ameaçava te engolir pra te levar pra todo canto comigo e você dizia que deixava, desde que eu mordesse seus quadris. Relaxa, eu começaria a mastigar por lá mesmo. Não sei se consigo ficar sem beijar o ossinho do seu ombro pro resto da eternidade. Acho que não quero mais entrar no palco, preciso fugir. Vai, me dá o isqueiro.

Queria te ver de novo, mas achei melhor entrar no palco. Não sei por quê aceitei esse trabalho e muito menos por quê resolvi entrar na porra do palco. Eu vou morrer e a culpa é minha. Mas caso eu sobreviva… ah, a glória. Novelas me terão como ator principal, revistas falarão mal de mim e tirarão fotos de nós dois de roupa de banho numa ilha. Jornais gritarão meu nome nas manchetes: “O ator que sobreviveu à mais terrível palavra”, “todos morreram, menos ele”, “que feito extraordinário, é necessário grande talento artístico”.

Caralho, se todo mundo morrer, quem vai ser prova de que eu disse a palavra? Merda, ainda dá tempo de voltar. Não, não, não. Entro no palco.

Está vazio. Nenhum lugar ocupado, nenhumzinho. Puta que pariu, meu maior momento e ninguém veio me ver? Me dá essa bosta desse cigarro. Grito, me enfureço, mando todo mundo tomar no cu.

Te pego pelos ombros, te olho nos olhos e digo a palavra. E agora, o que será de nós, meu bem?

ravi freitas

eu sou o inverno russo matando todos aqueles que se aproximam