A escolha da obra e referências

Sobre o projeto gráfico, parte um

Caio Henrique
Do que falo quando falo sobre: design
13 min readApr 6, 2017

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Concepção e definição

Tantas ideias…

A ideia de produzir uma segunda edição de “Os Filhos do Medo” veio depois de meses tentando outros tipos de publicação. Eu sabia que queria fazer um publicação impressa, também sabia que ela teria um viés literário, preferencialmente um romance de ficção escrito por mim. Depois de passar por ideias que ainda pretendo num futuro explorar, cheguei em adaptar uma obra.

Passei um ano e três meses na Inglaterra, onde tive a oportunidade de sair do país e ver outras culturas. Quando voltei, senti a necessidade de procurar entender mais sobre o Brasil e sua pluralidade cultural. Em um trabalho da universidade, cujo objetivo era mapear alguma coisa, resolvi mapear minhas ideias de TCC e, no caminho de “adaptar uma obra” não tinha dúvidas que seria alguma coisa relacionada a cultura brasileira.

Após deixar as ideias grandiloquentes de produção literária e gráfica de lado, resolvi fazer uma pesquisa profunda de obras que pudessem representar o Brasil. Fui aos clássicos de Machado de Assis e as obras de Lima Barreto — autor negro que sofreu de alcoolismo numa época onde isso era considerado loucura e a abolição da escravatura ainda era recente. “Triste Fim de Policarpo Quaresma” é uma obra fantástica e que necessitava (necessita) de uma edição mais bem acabada. Porém, ao ler a edição da Cia das Letras/Penguin com o prefácio de Lilia Moritz Schwarcz, me convenci que não era a hora — talvez devesse ter feito, o momento é propício já que Lima Barreto será o homenageado da edição de 2017 da Feira Literária de Paraty, merecidamente, ainda que uma biografia feita pela própria Lilia Schwarcz, finalizada em dezembro de 2016, para a Cia das Letras sairá, coincidentemente, em maio de 2017— e preferi procurar outros autores. Ainda bem.

As obras de Ruth Guimarães são diversas, como já falado anteriormente, e todas merecem ser resgatadas e apresentadas para o público atual. Folclore era uma coisa que me interessava, e pensando no que um designer poderia fazer com esse tipo obra, visualmente falando, me animava profundamente. Muito do que conhecia sobre o tema provém da literatura de Monteiro Lobato e do programa infantil “O Sítio do Picapau Amarelo”, além das poucas aulas sobre o assunto que tive no Ensino Infantil. Explorar uma obra que não era infantil, voltada para um público mais adulto e interessado pelo assunto, convenceu-me que era esse o tipo de obra que queria adaptar em meu projeto de conclusão.

Primeiramente me propus a fazer uma nova edição para o livro “Lendas e Fábulas do Brasil”, lançado em 1971 pela editora Cultrix e, depois, em 1989, pelo Círculo do Livro. Porém, ao fazer um primeiro contato com o filho de Ruth, Joaquim Maria Guimarães Botelho, descobri que a obra seria reeditada pela editora Letra Selvagem e seria lançado ainda no ano de 2017. Consegui o contato de Joaquim por um caso de sorte. Antes mesmo de me decidir pela obra, julguei sensato procurar mais a respeito da autora. Achei uma revista acadêmica, a ngulo principal referência para este artigo, achei seu nome entre os organizadores, procurei seu nome na internet e, achando seu site, achei prudente entrar em contato. Dizia que tinha interesse em trabalhar com uma das obras de Ruth em meu projeto acadêmico, e que se ele saberia me dizer onde e como conseguir o direito da obra — ou a permissão de uso. Suspeitava que fosse filho, mas não me atrevi a comprovar tal fato. Dentro de poucos minutos ele me liga, dizendo que estava interessado no projeto e que entraria em contato em meu e-mail.

Durante nossas conversas descobri o fato relatado acima, e achei que seria interessante trabalhar alguma outra obra que não fosse ser lançada — já que tinha ideias de publicar a obra eu mesmo ou com ajuda de um edital (que ainda é uma opção a ser considerada para o prosseguimento do projeto). Para minha surpresa, “Os Filhos do Medo” ainda não seria publicado tão cedo e Joaquim tinha interesse de resgatar a obra. Não pestanejei e falei que faria uma proposta para uma nova edição da obra.

A obra meio que me escolheu

Pesquisa sobre a obra

Existe pouco material na mídia sobre “Os Filhos do Medo”. Além dos artigos da já citada revista Ângulo, dou destaque para a nota de Roger Bastide para O Estado de São Paulo, encontrada a primeira parte em um repositório particular e a segunda parte no acervo digital do Estado de São Paulo. Não foi fácil achar a segunda parte. A primeira veio pelo artigo, só que ele acaba abruptamente, sem uma conclusão. E se algo interessante estivesse ali? Não me contive e tive que pesquisar. Acessei o site do Estadão e procurei em seu acervo digital a edição de 1 abril de 1951, que tinha sido referenciada na primeira parte encontrada. Não encontrei a continuação. Achei estranho mas prossegui e, meio que por sorte, achei. Fato curioso de notar que a continuação da coluna veio em outro dia e em outro caderno, prática incomum nos dias de hoje.

A capa do livro, edição de 1950.

Atualmente, “Os Filhos do Medo” é um livro raro, de difícil aquisição seja por sebos ou bibliotecas públicas. Como só possui apenas uma edição, datada de 1950, essa dificuldade é entendível. Porém, precisava adquirir a obra de alguma forma, já que precisava lê-la para começar a esboçar um projeto gráfico e, também, datilografar seu texto para que fosse feita uma revisão ortográfica por um editor e, assim, passível de trabalhar sua diagramação. Depois de procurar nos sites Estante Virtual e Mercado Livre, e ligar para sebos nas regiões de Bauru — interior paulista — e Santos — litoral sul paulista, encontrei-o em um pequeno sebo em Porto Alegre. O livro se encontrava em condições precárias, aparentando ser uma “edição de sobra” de gráfica, pois a grande maioria das páginas se encontravam ainda sem refilo. A espinha estava quebrada e as páginas amareladas e algumas emboloradas. Querendo ou não, 68 anos se passaram desde sua impressão, é natural estar nesse estado. O livro veio ainda dentro de um plástico e uma etiqueta que lia-se “Raro — R$44,90”, mostrando que o sebo se preocupava com a condição e armazenamento do livro. Ele poderia ter chegado em minhas mãos em pior estado.

Scans da primeira edição do “Os Filhos do Medo”. O estado do livro era bem precário.

Digitalizei todo o livro através do programa Adobe Acrobat DC, que possui uma ferramenta muito boa de reconhecimento de texto, facilitando minha vida na hora de passar o livro para um arquivo de Word. Li enquanto transcrevia o texto, fazendo anotações pertinentes e um documento no computador. Nele, basicamente, escrevia as estruturas e o que de diferente tinha em cada capítulo. Por exemplo: na Parte Um, capítulo 1, existia uma tabela; anotei que deveria ficar atento com isso e pensar em uma diagramação que comportasse uma tabela.

O texto tinha muitas particularidades que tornou o processo de diagramação, mais tarde, mais complexo. Era tabela, expressões em grego, listas, ilustrações, poemas, parlendas, orações, referências de livros em francês, espanhol e inglês. Fora o texto corrido da autora, que necessitava dessas informações para o fio condutor da narrativa.

“Os Filhos do Medo”, em sua primeira edição, era um livro de diagramação simples, que muitas vezes podia tornar a leitura dificultosa em algumas partes. Existia uma hierarquia de informações mas, acredito pela falta de pesos e tipografias de tipos móveis para a produção do livro, tornou o design em si meio enfadonho, que não ressalta a voz de Ruth Guimarães.

Scans da primeira edição do “Os Filhos do Medo”. O estado do livro era bem precário.

Depois do processo de digitalização e datilografia, o livro precisava ser atualizado para o novo acordo ortográfico da língua portuguesa. Por datar de 1950, o livro continha palavras que há muito não utilizavam acento (editôra, enxôfre, mêdo, etc.). Quando conversei sobre isso com Joaquim, ele mesmo se habilitou em revisar o texto, adaptando para a nova ortografia. Incluso a obra foram adicionadas um prefácio escrito por Joaquim e algumas observações que a própria Ruth Guimarães fez, durante uma leitura crítica em 2000.51

Análise de Similares e Referências Visuais

Enquanto esperava pelo texto, fiz uma pesquisa de similares. A loja virtual Amazon (2017), ao se pesquisar por folclore, vemos uma predominância de obras voltadas ao público infantil. Porém, existem alguns livros de pesquisa, porém todos trazem um semelhança com livros escolares.

Algumas capas de livros relacionados a folclore que você pode encontrar na Amazon.com

No meio dessa pesquisa, uma coleção que ganha destaque é de “Folclore Nacional”, publicado pela editora Martins Fontes. Os livros possuem uma identidade e trazem diversos assuntos sobre o folclore brasileiro. Aqui, nota-se, que dependendo a publicação, a identidade de um livro pode migrar de autor para coleção.

Coleção “Folclore Nacional”, publicado pela editora Martins Fontes.

Ainda, vale notar, que a maioria das capas nessa categoria (e pesquisando ainda obras sobre mitologia) procuram representar algo mais literal, algum símbolo ou passagem do texto, podendo até ao uso de fotografias que nos remetem ao folclore, ou reproduções de pinturas (no caso de obras mitológicas). Ao final, ficou a pergunta: será que os livros estão tendo o apelo necessário para angariar novos leitores?

Uma parte importante para o projeto foi a pesquisa de referências visuais. No caso desse projeto, procurei ver diferentes tipos de livros que estavam no mercado, assim como olhar para a história da publicação editorial no brasil na época em que a primeira edição foi lançada. Dividirei em três partes esse item, explorando três vertentes em minha pesquisa visual.

Poty e Guimarães Rosa

O Brasil da época do lançamento de “Os Filhos do Medo” era o ano de Juscelino Kubitschek, da construção de Brasília, do “cinquenta anos em cinco”, da primeira Copa do Mundo de Futebol no continente. Foi também a época do modernismo brasileiro, defendido em todas as frentes, desde a arquitetura da nova ca pital federal até o design gráfico de livros (MELO:RAMOS, 2011, p.245). Falando dessa área em específico, o destaque fica para artista paranaense Poty. Ilustrador, gravador, professor, desenhista e muralista, Poty trabalhou em diversas capas de livro, de autores como Jorge Amado e Dalton Trevisan. Porém, foram os trabalhos realizados nas obras de Guimarães Rosa que teve destaque.

Em “Grande Sertão: Veredas”, a ilustração se constrói como uma colagem de figuras soltas na massa vegetal, um lusco-fusco entre camuflagem e visibilidade que, de resto, é o enigma em torno do qual gira o romance. Além de ilustrador, Poty também foi designer. A capa para o livro de Dalton Trevisan, “Novelas Nada Exemplares”, mostra o uso harmônico de ilustração e tipografia, com letras desenhadas irregularmente, “na medida exata para, ao mesmo tempo, se destacar do desenho e fazer parte dele” (MELO:RAMOS, 2011, p.276)

Capas feita pelo artista Poty.

Nessa última obra de Poty, com traço que remete a xilogravura, foi uma linha de referência que procurei pesquisar para o projeto gráfico. Naquele momento, parecia-me viável fazer algo nessa estética, já que sempre imaginei o livro predominantemente preto e branco. A xilografia (ou xilogravura) “é um processo e técnica de gravura em relevo sobre madeira que permite a impressão tipográfica de figura(s) ou texto(s), cujo caracteres (não móveis) são entalhados e prancha de suporte”. Esse tipo de impressão é muito utilizada ainda hoje e, esteticamente, dá um ar mais rústico para as ilustração devido a textura que a madeira deixa na hora da impressão.

Xilogravura de Oswaldo Goeldi, “Tarde. (reprodução da internet)

No Brasil, esse tipo de técnica foi largamente utilizada pela literatura de cordel, que teve entre 1920 e 1950 seu período mais produtivo. A estética da xilo ficou muito ligada a esse tipo de publicação, sendo simulada até em cordéis impressos digitalmente e são vendidos nas bancas de jornais por toda São Paulo. Porém, esse estilo não ficou limitado a histórias que retrama Lampião e sua gangue, recentemente foram utilizados pela extinta Cosac Naify para ilustrar uma coleção de contos dos irmãos Grimm.

Dois livros de contos folclóricos

Em 2012 a Cosac Naify lançou uma coletânea de dois tomos dos contos reunidos de Jacob e Wilhelm Grimm. O projeto gráfico de “Contos Fantásticos Infantis e Domésticos” foi desenvolvido por Flávia Castanheira, com ilustrações do artista J. Borges e tradução de Christine Röhrig. É a primeira vez no Brasil que esses contos foram traduzido por completo.

Em seu blog, Machado fala que o fantástico dos contos e das ilustrações é replicado através de um esquema de 12 combinações diferentes de cor de papel e tinta ao longo do livro. Foram usados papeis típicos das capas dos cordéis, de 4 cores diferentes, que se alternam a cada caderno, sempre impressos em duas cores especiais.

O destaque do livro são as ilustrações de J. Borges. O xilógrafo pernambucano, sem formação formal, alfabetizou-se para ler cordéis. Considerado um gênio da arte popular pelo The New York Times, J. Borges traz um pouco do traço brasileiro a essa obra estrangeira, prestando uma “digna homenagem ao empenho com que Jacob e Wilhelm Grimm recolheram esssas pequenas maravilhas da “poesia da Natureza”.

Contos Maravilhos Infantis e Domésticos, Irmãos Grimm, Cosac Naify (reprodução da internet)

Outro livro que segue a mesma temática é o projeto de conclusão de mestrado de Inka Vybohova na Academy of Fine arts em Banská Bystrica, Slovakia. O intuito de “Non-Traditional Tradition” era o redesign da coleção de contos folclóricos eslovacos, publicado por Pavol Dobšinský em 1880–1883. A intenção desse redesign foi trazer a obra de volta para o seu público original: os adultos. As ilustrações seguem uma linha pesada, sangranta, inspirada por partes das histórias: o uso de vermelho em contraste com preto e branco causa bastante impacto. Ainda, Inka utilizou motivos de regiões originais de cada conto folclórico, costuradas ou como adorno dentro do livro, trazendo não apenas um aspecto visual para a obra, mas também informação cultural e geográfica.

“Como os contos de fadas são de diferentes regiões da Eslováquia, eu arrumei eles usando adornos em cada página título de cada conto, ajudando os leitores a conectar visualmente os adornos com sua região [de origem] e, talvez, melhor entender esses contos sabendo geograficamente suas origens.”

O projeto conta com uma caixa em tecido que utilizada um adorno bordado da região de Malohont-Gemer na Eslováquia, região essa onde Pavol nasceu. O bordado também aparece na capa de cada volume contidos na coleção.

“A ideia principal da realização do projeto Non-Traditional Tradition pode ser entendido como uma reação e reflexão artística ao mercado editorial e a necessidade deste de censurar os contos de fadas para crianças (muitas vezes tornando-os cafona). Ao conectar o design de livros contemporâneo a arte popular tradicional, eu estou criando este estilo e, de alguma forma, trazendo os contos de fadas de volta aos seus leitores originais — os adultos.”

Non-Tradition Tradition, design feito por Inka Vybohova (reprodução da internet)

Os livros de Tereza Bettinardi

Tereza Bettinardi diz livros são encontros. No caso, ela falava sobre a obra Decameron, lançada pela Cosac Naify em 2013, com projeto gráfico dela e de Elaine Ramos. O livro, um clássico da literatura mundial, tem um dos designs mais lindos que eu já vi em um livro: ricamente ilustrado pelo artista Alex Cerveny, traz a obra medieval para a contemporaneidade. É um projeto gráfico que homenagea a tradição do livro medieval.

Decameron, Cosac Naify, design feito por Tereza Bettinardi e Elaine Ramos (reprodução da internet)

Outro livro muito interessante, cujo projeto gráfico é também de Tereza é a edição da editora Carambaia para o livro Dom Casmurro. Lançada no final de 2016, com uma tiragem de 1000 exemplares, sendo que 100 deles sofreram, na capa, algum tipo de intervenção do artista responsável pelas ilustrações do livro, o paulistano Carlos Issa.

Em texto publicado em sua conta no Medium e no blog da editora, Tereza nos guia pelo processo gráfico do livro

“No começo de 2016, fui chamada para um encontro às escuras: era a primeira reunião com os editores Fabiano Curi e Graziella Beting, da Carambaia. O nome do livro só foi relevado pessoalmente. No caminho de volta para casa, um misto de euforia extrema e pavor tomou conta de mim. A sensação deve ser parecida com a de ganhar na loteria. O desafio trazia uma responsabilidade enorme [e dupla]: honrar um dos livros mais importantes da nossa literatura e da minha vida.”

Após uma visita ao Rio de Janeiro para visitar os locais importantes representados na obra, além de uma pesquisa do que já tinha sido feito sobre o livro por outras editoras, Tereza chegou à algumas conclusões: o Rio de Janeiro é indissociável da obra, e que Dom Casmurro se trata de uma obra sobre ciúme.

Dom Casmurro, Carambaia, design feito por Tereza Bettinardi. (reprodução da internet)

As ilustrações de Issa retratam esse sentimento. Estampas florais convivem com as interferências sombrias de Issa: “contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa”. O formato do livro homanegea a primeira edição de Dom Casmurro, da Garnier, fazendo a conexão entre autor e leitor com um abismo de 117 anos. A tipografia, ao invés de remeter o passado, trouxe as vozes dos personagens de Machado para o presente. Ainda, na frente do livro, é possível ver o Pão de Açúcar e os Arcos da Lapa.

“O ato de projetar livros envolve um diálogo constante com editores, ilustradores, produtores gráficos, leitores. E claro que esta conversa inclui as obras, os autores, os personagens, o cenário da trama. Quando desenhamos um livro novo, somos convidados a conhecer uma pessoa nova, entrar em diálogo.”

Bibliografia consultada:

GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm. Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos. São Paulo: Cosac Naify, 2013. 2 v.

MELO, Chico Homem de; RAMOS, Elaine (Org.). Linha do Tempo do Design Gráfico no Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

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