Capa para a segunda edição de “Os Filhos do Medo”

O design de “Os Filhos do Medo”

Sobre o projeto gráfico, parte dois

Caio Henrique
11 min readApr 6, 2017

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Entender do que se trata a obra é fundamental para um bom design de livro. Não entender e não conseguir representa-la significa um projeto gráfico ruim, que poderá fazer com que um leitor desista de um livro ou, pior, perca o gosto de ler. Pode soar terrorista, mas essa possibilidade está aí.

Não é somente o que o autor escreve num livro que vai definir o assunto do livro. Sua forma física, assim como sua tipografia, também o definem. Cada escolha feita por um designer causa algum efeito sobre o leitor. Este efeito pode ser radical ou sutil, mas normalmente está fora da capacidade do leitor descrevê-lo, segundo Hendel.

O projeto gráfico de “Os Filhos do Medo” foi definido depois de muita leitura, teste e experimentação. Desde o começo uma coisa era clara em minha cabeça: era necessário que o leitor fosse transportado para o universo folclórico do livro. Durante a leitura do livro, muitas vezes me peguei imaginando alguém contar essa história para mim, em algum lugar com muito mato em volta. Engraçado que esse sentimento não é particular meu, Joaquim Maria Botelho diz isso sobre a obra de sua mãe: “Nas histórias que Ruth contou, numa linguagem de avó para os netos, sua prosa é tão límpida e serena que parece que ouvimos o crepitar da madeira na fogueira do quintal”. Não só ele ou eu mas, em sua resenha para o Estadão, Batisde também fala algo parecido:

Possam essas poucas reflexões a margem de um belo livro, que fez reviver em mim, frequentemente, lembranças da infância, da época em que eu vivia nas minhas montanhas natais, no meio de bruxas, sonhando, as vigílias de inverno quando me contavam histórias do Diabo, mostrar todo interesse científico como literário, dos Filhos do Medo de Ruth Guimarães.

Por mais que se trate de demônios de exclusiva procedência rural, a obra seria lida, em sua grande maioria, por cidadãos urbanos. O público leitor, provavelmente, seria formado por acadêmicos (folcloristas, historiadores, sociólogos etc) e um público geral mais adulto, que tivesse interesse nesse tipo de assunto (folclore rural, documentação de casos, etc). Talvez tivessem afinidade com o ambiente relatado, ou conhecesse o interior do estado apenas em curtas viagens que fez durante a vida. Era preciso representar esse meio da maneira mais fiel e interessante possível.

Outra coisa que me perseguiu desde a minha primeira leitura era de que a obra deveria ser exclusivamente preta e branca. Parecia ser as cores certas para a obra. Por falar sobre o demônio, o texto também fala de Deus. Essa dualidade tão presente em nossa cultura mundial (a luta do bem e do mal, o vilão e o herói, yin/yang) deveria aparecer de alguma forma no design do livro. O dualismo guiaria, também, as ilustrações. O que é real? O que é imaginário? Durante toda a obra os depoimentos brincam com nossa imaginação, nos fazendo crer que aquilo relatado realmente aconteceu com a pessoa, e que pode muito bem acontecer com nós. O trabalho das ilustrações serviriam a esse propósito: brincar com a percepção e a imaginação do leitor, transportando-os para dentro do universo que o livro descrevia.

Então tinha definido, em linhas gerais, como o livro seria: predominantemente preto e branco, ilustrado de alguma forma e que brincaria com a percepção do leitor. Com isso em mente, parti para ação.

O texto

Comecei a definir a cara do livro pelo seu elemento principal: o texto. Joaquim fez a atualização ortográfica, adicionou um prefácio e um comentário em forma de nota na primeira parte do livro. Isso foi anotado na minha lista de coisas a se pensar. A primeira coisa que fiz foi dissecar a obra outra vez. No original de 1950 as divisões de matérias são meio confusas, e demorei um bocado para entender como a divisão dos capítulos, sub-capítulos, títulos e subtítulos apareciam no sumário. Fiz uma lista enorme, colocando o que tinha de notável em cada item mais uma vez. Isso foi decisivo, pois, sem isso, teria problemas mais tarde, como a escolha da tipografia ou a tabela (que deu grande dor de cabeça).

Peguei a primeira parte do livro para testar algumas fontes e grids. Como já dito anteriormente, Ruth utiliza expressões em grego numa parte do texto, limitando a escolha das tipografias. O texto, também, não me parecia certo o uso de fontes sem serifa, por exemplo. Por se tratar de uma obra de pesquisa, mesmo que tenha partes que aparenta ser prosa, o tema do livro, a voz da escritora, não parecia certo pensar em outra opção a não ser serifada — mais tarde eu reconsideraria essa afirmação ao ver que o texto ficava muito engessado utilizando apenas uma fonte tipográfica. Pesquisei fontes com essas características: suporte a grego e serifadas. Em um primeiro momento pensei em utilizar uma fonte brasileira, porém desanimei perante os preços e a falta de fontes serifadas brazucas com suporte ao grego. Mesmo no mercado, as poucas que possuíam suporte ao grego ou não eram interessante o suficiente para se considerar sua compra para esse projeto. Tive que reconsiderar e procurar alguma em minha própria biblioteca. Achei quatro: Minion Pro, Constantia, Times New Roman e Palatino. Também deixei em reserva a Leitura, cuja família possui serifas e não serifadas e só não foi utilizada no texto por não ter suporte a língua grega.

Com as tipografias selecionadas, parti para definir o formato do livro. Pensei em fazer um objeto mais alto e fino, que encaixasse bem nas mãos e fosse elegante. Tentei um formato de 220x130mm, com margem de topo de 20mm; inferior e externa, 30mm; e interna de 15mm, grade simétrica e páginas espelhadas. Isso me deixava uma coluna de 85x170mm para trabalhar: um tanto quanto difícil para um livro longo como é “Os Filhos do Medo”. Trabalhei exclusivamente com alinhamento justificado, já que o alinhamento a esquerda deixava o texto estranho.

Testes com as tipografias Palatino, Minion Pro e Constantia, respectivamente.

No teste tipográfico — realizados com uma impressora a laser em minha casa — logo descartei a Times New Roman por ser uma tipografia muito utilizada, não dando a personalidade que o texto de Ruth pedia. A Minion Pro, por mais que tivesse muitos pesos, parecia que deixava o texto sufocado, espremendo as letras em seu espaço, isso fazia com que tivesse um aproveitamento de palavras por página melhor, porém não era lá muito confortável de ler. A Palatino, por sua vez, tinha um traço interessante, mas justamente por conta de suas ascendentes finas demais, a tornava difícil de ler. A Constantia se saia melhor em legibilidade e na mancha textual, porém perdia quanto ao aproveitamento de palavras por linhas, já que é uma tipografia de desenho largo. Olhando com mais calma agora, deveria ter feito mais testes, principalmente depois de mudar o formato.

O tamanho 220x130mm funcionava bem enquanto testava-se apenas com o texto. Quando foi preciso colocar a tabela aí descobri que o formato me traria problemas. Ruth Guimarães, em sua escrita muito particular, colocou elementos visuais que se relacionam diretamente com o texto. Essa tabela era como se ela continuasse a contar a história, porém por meio de uma tabela. Isso se repetiria mais adiante, com um diagrama, uma partitura musical e uma representação gráfica — que precisei alterar levemente de como era apresentado no original de 1950. Era preciso, então, um formato mais largo, que comportasse tudo confortavelmente. Decidiu-se usar o 220x160mm, com margem superior de 15mm; inferior, 30mm; interior, 18mm e exterior 25mm, grade simétrica e páginas espelhadas.

Página final do prefácio. O uso da fonte Leitura Sans deu mais versatilidade para a hierarquias de informação dentro do livro. (fonte: print-screen do program inDesign CC)

Esse novo formato tornou a vida do texto, também, mais fácil. Com uma área de 175x117mm para trabalhar o conteúdo, diminuiu-se drasticamente a quantidade de páginas que até então eram utilizadas. A Constantia foi escolhida a tipografia base da publicação, sendo utilizada — naquele momento — para tudo: texto, tabela, título, subtítulo, nota de rodapé, etc. Porém, ela não possui uma quantidade muito grande de pesos, se limitando aos básicos regular, italic, bold e bold italic. O livro ficava visualmente pobre. Nesse momento, começou-se a utilizar a tipografia brasileira Leitura Sans, que já possuía uma variante serifada, o que acabou combinando muito bem com a Constantia. O uso da fonte sem serifa deu um ar mais contemporâneo para obra, algo que já era desejado desde o começo do projeto.

Depois de definido um arquivo base — template — pode-se diagramar todo o livro. Segui a ordem do texto original, fazendo alterações nos paragraph styles e character styles enquanto diagramava. Depois de reuniões com as orientadoras, o grid foi alterado um pouco, dando mais respiro aos títulos correntes e os fólios, que se localizam na parte inferior do livro. Até o final foram feitos algumas pequenas adaptações, mas que pouco alteraram a base da diagramação textual do livro.

Ilustrações

Um pouco depois de já ter definido o arquivo base, comecei a pensar em como representar a dualidade entre real e imaginário. Em um primeiro momento tentei algumas intervenções entre fotografia — o real — e desenhos — o imaginário. Porém, o pequeno teste feito no computador não me satisfez (ver imagens 58 a 60).

Teste com imagens da internet para ver se funcionaria minha ideia. Não achei que era o caminho. (fonte: elaborada pelo autor)
Tentei fazer alguns testes com fotografia de fogueira para capa, tentando enxergar a identidade do livro. Achei interessante, mas ainda não era o caminho. (elaborada pelo autor)

A fotografia em si parecia ser o problema, já tinha descartado fazer um caderno de imagens e representações dos personagens presente no livro por achar que tornaria uma obra tão rica em uma simples pesquisa documental. Comecei, então, a trabalhar com a xilogravura. Nesse teste queria ver como a tipografia dos títulos — Leitura Sans — comportava-se na madeira, e qual resultado e texturas iria tirar dali. Fiz uma pequena composição com o nome do primeiro capítulo, imprimi e passei para a madeira. Depois de iniciado a parte da gravação, comecei a pensar que, talvez, não fosse esse o caminho a seguir. Após completada a gravação, e a utilização de tinta óleo em papel sulfite para impressão — um erro tremendo de execução, já que a tinta óleo desde aquele dia nunca secou totalmente — obtive um resultado que me deixei entre eufórico e decepcionado. Na pós-produção, trabalhando no Photoshop com as amostras da impressão, vi que minhas suspeitas estavam certas: não era o caminho a seguir. Conclui o seguinte: deixava a obra sombria, aparentando ser um livro de terror; também, não combinava com o restante do que tinha sido feito até então. Desisti de usar xilogravura.

Usei um compensado de madeira. Foi fácil, o problema que não ficou do jeito que eu imaginava. (elaborada pelo autor)
Impressão já tratada. Não era o caminho a seguir para a identidade do livro. (elaborada pelo autor)

Não sou um bom desenhista, ilustrador ou fotógrafo: no mercado, eu teria contratado um profissional mais gabaritado para fazer essa parte do projeto. Porém, no meu âmago, eu desejava fazer tudo e, principalmente, experimentar. Voltei a ideia de usar fotografia e algum tipo de intervenção artística. Também tive uma outra ideia: fazer um ensaio fotográfico no meio da mata do interior paulista, fotografando árvores e fogueiras ao luar. Acreditava que com o equipamento que tinha — uma Canon 1200D e um tripé — seria o suficiente.

Meus pais possuem uma casa em Serra Negra, interior de São Paulo. Lá pude tirar algumas fotos da mata nativa em uma represa da cidade. Contudo, o ensaio fotográfico pretendido teve algumas coisas que impossibilitaram: o mal tempo e a falta de uma lente mais aberta, que permitia mais entrada de luz. Possuo apenas um 80mm, uma lente básica, e que no último dia conseguiu produzir apenas uma ou duas fotos decentes no anoitecer serra negrense.

Uma das fotos que serviram como base para as ilustrações. Todas tiradas em Serra Negra/SP. (elaborada pelo autor)
Minha câmera não era boa o suficiente para tirar fotos de noite. Tentativa tirada em Serra Negra/SP. (elaborada pelo autor)

Porém a minha ideia de fazer intervenções em fotos havia tido relativo sucesso. A ideia era misturar os personagens que aparecem no livro — saci-pererê, lobisomem, mula sem cabeça, bruxas — no meio das fotos da mata. Tinha definido também que as intervenções seriam feitas em linhas, como se fossem rabiscos ou sketches. Tentei fazer algumas na mão, mas se mostrou um trabalho que demandaria mais tempo e habilidade para execução. Então decidi fazer as intervenções diretamente no digital, misturando floresta e personagem, criando uma só imagem que confunde o leitor. Existe uma intervenção na ilustração, mas não é algo claro, demanda tempo ou mesmo que alguém fale para que seja notado. O tema de cada intervenção foi guiado pelo capítulo que ele abre. Algumas possuem alguma coisa, outras não, deixando a cargo de quem vê achar ou inventar algo nas linhas.

Procurei referências do que colocar no meio da foto da mata. Montava uma composição e começava a trabalhar. Usei um brush que simulava aquelas canetas FinePen. Controlava a pressão para cada ilustração não ficar tão diferente uma da outra. Usava como referência a foto, me deixando aberto para colocar detalhes que ligassem com o capítulo. Aqui o casal tem um sorriso mais demoníaco e rabos.
Ilustração final. A versão em fundo branca não possui a intervenção, mas a mata é a mesma.

O desenvolvimento da parte externa é uma consequência do que já tinha sido trabalhado dentro do livro. O dualismo ganha a materialidade, não sendo apenas uma representação gráfica. Um luva branca, com a ilustração em preto impressa, representa a realidade. Também serve para colocar as informações comerciais do livro (texto introdutório, código de barras, etc.). A capa do livro propriamente dita é totalmente preta, com a mesma ilustração presente na luva é aplicada em verniz localizado brilhante, dando a ideia do imaginário. Nos protótipos, por ser caro produzir a matriz de verniz para apenas 6 livros, usei papel contact, cortando letra por letra. O resultado foi muito melhor do que o esperado.

Livro saindo de dentro da luva. (foto do autor)

Produção Gráfica

“Os Filhos do Medo” é impresso todo em apenas uma cor, o preto. As dimensões finais do livro ficaram em 220x160mm fechado, 220x320mm aberto. O miolo é composto em papel Pólen Soft 80g/m², com o texto nas fontes Leitura Sans e Constantia. A capa, lombada e quarta capa possuem acabamento de verniz localizado sobre laminação fosca, além da encadernação capa dura, lombada quadrada e costura.

A luva que protege o livro tem dimensões de 355x315mm aberta, com impressão em preto sobre papel supremo 320g/m² e acabamento de refilo, dobra laminação fosca.

Todas as peças apresentadas foram impressas na gráfica Inprima, São Paulo, no verão de 2017.

Bom, o resultado final você pode encontrar no meu site, www.caiohenrique.com e no meu perfil do Behance.

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Obrigado pela atenção!

Bibliografia consultada:

GUIMARÃES, Ruth. Os Filhos do Medo. Porto Alegre: Editora Globo, 1950.

HENDEL, Richard. O Design do Livro. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

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