Livros da extinta Cosac Naify

O livro como objeto

Sobre livros e editoras, parte um

Caio Henrique
9 min readApr 6, 2017

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Introdução

No fim de 2015, o editor e sócio Charles Cosac informava a todos, depois de quase 20 anos, que a editora Cosac Naify iria fechar as portas. Com o intuito de introduzir obras de antropologia, psicologia e arte nas prateleiras, a Cosac teve altos e baixos, vivendo em uma insustentabilidade financeira e livros com apelo e qualidade gráficas nunca antes vistos. Com autores que vão desde o artista plástico Tunga ao angolano Valter Hugo Mãe, ganhou diversos prêmios de qualidade literária e gráfica no país e tinha reconhecimento mundial nesses segmentos.

O fim da Cosac Naify é o fim de uma era, porém, os leitores não ficaram órfãos. Além das grandes editoras do mercado mainstream (equivalente a expressão “de massa”), conglomerados como Nobel, Grupo Companhia das Letras e Sextante que melhoram a qualidade de seus livros a cada dia, nota-se um crescimento do número de pequenas editoras que procuram o diferencial na qualidade literária e gráfica de suas publicações. Contudo, antes de prosseguir, desejo deixar uma coisa clara. Dizer que um determinado tipo de obra é para a “massa”, ou mainstream, e outra para um público “seleto” pode soar pejorativo, como Arantes já refletiu:

Quem é o povo de quem se fala? A expressão “cultura popular”, nos dois usos analisados neste capítulo, implica em visões valorativas (negativas) dessa categoria social. Ela se refere, por um lado, a “povo-massa” (em contraposição a “elite”), pensando neste caso como suporte de um não saber. Por outro, como constituindo o espaço social onde se preservam (deturpam) as tradições nacionais.

A intenção não é refletir as consequências culturais que as editoras, seja um grande grupo ou uma dita independente, tem em nossa sociedade. O intuito é mostrar o panorama do mercado, apresenta-lo para os não familiarizados com ele. Produzir um livro é conhecer quem faz e o mercado em que ele se insere, e nesse tópico procura-se explorar isso.

Um Panorama Histórico

Não se sabe ao certo quando começamos a contar histórias. Podemos citar o domínio da fala, uma adaptação totalmente biológica, em algum momento antes dos primeiros homo sapiens; ou, ainda, no desenvolvimento da comunicação por símbolos, tendo as pinturas rupestres e o inúmeros petróglifos — “sinais ou figuras simples entalhados ou arranhados na rochas” (MEGGS, 2002, p.19) — como sinais de uma tentativa de comunicação, transmissão de conhecimento e documentação da história. Algo parecido com um alfabeto ou livro apenas viria a aparecer na Mesopotânia, onde os sumérios, em tabuletas de argila que datam de 3100 aC., riscavam com estiletes de madeira uma arcaica escrita pictográfica. Depois disso, pela simples mudança de equipamento (do estilete pontiagudo por um de ponta triangular) propiciou-se o desenvolvimento da escrita cuneiforme, que se desenvolveu de símbolos literais para abstratos.

Exemplo de escrita cuneiforme

Do cuneiforme mesopotâmicos aos hieróglifos egípcios e os sinais fonéticos simples fenícios, a linguagem se desenvolveu tendo diferentes meios de reprodução. Além das tabuletas de argila, também se escrevia — ou desenhava — em tábuas de madeira, daí que vem o termo códex (do latim caudex, que significa “tronco de árvore”) muito utilizado para se referir a livros antigos (HASLAM, 2006). Os Egípcios foram os primeiros a utilizar algo parecido como o que utilizamos atualmente como folha, um recipiente que recebe tinta: o papiro. Proveniente de uma planta muito abundante ao longo do rio Nilo, o papiro foi largamente utilizado, possuindo características de uso e produção muito parecidas com o atual conceito de livro.

Oito tipos diferentes de papiro eram produzidos para usos que iam de proclamações reais à contabilidade do dia a dia. As folhas acabadas tinham uma superfície superior de fibras horizontais chamada de recto e uma superfície inferior de fibras na vertical chamada de verso. As folhas mais altas de papiro mediam 49 centímetros e até vinte folhas podiam ser coladas umas sobre as outras e enroladas, com a face recto voltada para dentro. (MEGGS, 2002, p.29)

Os escribas egípcios podem ser considerados os primeiros designers de livros. Claro, os hieróglifos não eram apresentados em forma de livro, mas sim em rolos, folhas de papiro coladas uma nas outras que podiam chegar até 20 metros de comprimento (HASLAM, 2006, p.6). Ainda sim, vemos ali algo com o mesmo intuito de armazenar conhecimento de uma maneira mais leve e compacta comparada com as tabuletas.

Livro dos Mortos de Hunefer — Tebas, Egito (19ª dinastia, 1275 a.C.).

Porém, o papiro não era unanimidade. Segundo Haslam, por mais que fosse o mais difundido, amostras de escritas de diversos povos, egípcios inclusivo, foram encontrados em recipientes derivados de pele animal seca e couro. O pergaminho foi uma alternativa ao papiro desenvolvida, provavelmente, pelo rei Eumênio II de Pérgamo.

A forma parecida com que temos nos livros de hoje deve-se as práticas romanas e gregas de ligar placas de madeira pelas bordas. Ao contrário do papiro — muito frágil — o pergaminho poderia ser empilhado e amarrado sem se quebrar e prejudicar o conteúdo ali escrito. “A palavra página, usada para denominar o lado de uma folha, advém do latim pagina, que significa “algo atado”, refletindo suas origens na encadernação e não no acabamento em forma de rolos, próprio do papiro” (HASLAM, 2006, p.7).

A China — aqui, entendida como a região inteira que atualmente conhecemos como China, e não especificando algum povo específico daquela região — contribuiu com diversas tecnologias que mudaram o mundo. Bússola, pólvora, papel e tinta, tudo isso vem de uma sociedade milenar e complexa, e que muitas vezes esquecemos de sua importância para o mundo. O papel, a base da caligrafia chinesa e do mundo impresso contemporâneo, tem sua invenção atribuída a Ts’ai Lun, funcionário do imperador Ho no ano de 105 d.C. (MEGGS, 2002). O papel se espalhou pelo mundo islâmico que, levando pelos mouros, chegou a Europa por volta de 1238. Outro invento chinês foi a impressão:

A primeira forma foi a impressão em relevo; os espaços em volta de uma imagem sobre uma superfície plana são extraídos, aplica-se tinta sobre a superfície remanescente em alto-relevo e uma folha de papel é colocada sobre a superfície e friccionada para transferir a imagem tingida para o papel. (MEGGS, 2002, p.55)

Sinetes e carimbos eram feitos desde o século III aC na China, que também criou os primeiros tipos móveis, oriundos da xilogravura que era utilizada para o desenvolvimento de peças gráficas, sendo o primeiro lugar no mundo onde o cidadão comum tinha contato com imagens impressas (MEGGS, 2002).

“Sutra do Diamante”, xilogravura de oração budista impressa na China, 868.

O desenvolvimento humano não nasce apenas de uma simples necessidade, mas das trocas que ocorrem entre diferentes povos. A Coréia teve grande participação na história da impressão também, tendo tipos móveis fundidos em moldes de areia em 1241 (HASLAM, 2006, p.8) e uma notável tentativa de produzi-los em bronze (MEGGS, 2002, p.62). Nascido em Mogúncia, Alemanha, Johannes Gutenberg produziu o primeiro livro impresso europeu, utilizando tipos móveis e iluminando-os posteriormente. Sua Bíblia de 42 linhas foi impressa em latim, e nasceu graças a todos esses citados anteriormente. “Ele conhecia o trabalho em metal e tinha familiaridade com as prensas usadas para esmagar uvas no processo de fabricação do vinho. Possuía e lia os códex encadernados e sabia da existência do papel.” (HASLAM, 2006, p.8). O método de Gutenberg proporcionou uma maneira mais fácil, barata e rápida de armazenar e disponibilizar conhecimento. Achou um terreno fértil para prosperar (o Renascimento estava logo ali) e chegar ao que conhecemos hoje como livro.

Detalhe da Bíblia de Gutenberg, 1455, e sua prensa, respectivamente.

Livro e e-book: uma tentativa de definição

Quando procura-se uma definição para livro, chegamos a conclusão que são diversas. Por exemplo, no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, diz que se trata de uma “coleção de folhas de papel, impressas ou não, cortadas, dobradas e reunidas em cadernos cujos dorsos são unidos por meio de cola, costura etc., formando um volume que se recobre com capa resistente”. Órgãos internacionais como a UNESCO, ainda, podem considerar que um livro apenas como publicações não periódicas que possuem pelo menos 49 páginas. Haslam define livro como “um suporte portátil que consiste de uma série de páginas impressas e encadernadas que preserva, anuncia, expõe e transmite conhecimento ao público, ao longo do tempo e do espaço”. Todas essas definições parecem um tanto datadas para o mundo onde possuímos livros e e-books. Mas qual a diferença entre eles?

Esse tipo de pergunta não seria feita seriamente antes de 2007, quando a Amazon lançou o primeiro e-reader — aparelho eletrônico de leitura de e-books — no mercado. Foi o primeiro a ter sucesso em introduzir um aparelho especializado em ser uma plataforma para os leitores. O conceito de e-books existia desde o surgimento dos primeiros computadores, porém foi apenas com o Kindle que eles conseguiam competir com livros impressos. Não era apenas o design e a tecnologia que tornou o Kindle um sucesso, mas “a completa solução para o usuário” dada pela Amazon. Em 2010 era estimado que existiam 3 milhões de aparelhos Kindle em uso por todo o mundo, um número difícil de confiar já que a empresa tem uma política de não divulgar seus números. Aqui no Brasil, os e-books apenas chegariam ao mercado em 2009, e os e-readers em 2010. Segundo pesquisa da Publishnews — site especializado no mercado de livros — em 2016 os e-books tiveram uma participação de 4.27% nas vendas de livros no mercado. É um número considerável, já que, segundo pesquisa feita pelo Instituto Pró-Livro, estima-se que 56% da população brasileira pode ser considerada leitora — “que leu, inteiro ou em partes, pelo menos 1 livro nos últimos 3 meses” (FAILLA, 2015). Nessa mesma pesquisa, que é um panorama da leitura no Brasil, 59% dos entrevistados desconheciam livros digitais, 7% queriam saber mais e 52% não demonstravam interesse. Carrenho (2016, apud FAILLA, 2016) diz que esses números se deve a pouca divulgação e comércio desse tipo de publicação. Contudo, mesmo com número expressivos, o livro digital ainda não é o favorito na sociedade. Em uma pesquisa feita pelo jornal britânico The Guardian, 62% dos jovens entre 16 e 24 anos preferem livros impressos a e-books. Em outra, mais recente pesquisa, feita pela professora Naomi S. Baron, da American University, concluiu que 92% dos estudantes universitários preferem a mesma coisa: livros físicos aos digitais. Os pontos que convergem entre as duas pesquisas, quando falados os motivos dessa escolha, muitos deles são relacionados a conexão emocional (sentir o cheiro do livro, a sensação de virar de página…), outros variam entre o preço e o desejo de ter uma prateleira cheia. Ainda são citados, principalmente na pesquisa conduzida por Naomi, “computadores, tablets e outros dispositivos digitais oferecem mais distrações à leitura, além de dor de cabeça e incômodos nos olhos”.

Mesmo não sendo o favorito, e-books vieram para ficar. Por isso, distinguir essas duas expressões — livros e e-books — seja errada, justamente se olharmos para o futuro. Tudo se baseia na forma como o conteúdo é apresentado ao leitor, não importando se é digital ou físico. O próprio desenvolvimento desse projeto, por mais que tenha se baseado na mídia impressa preferencialmente, nunca descartou a possibilidade de adaptação da obra para o meio digital, como estratégia de divulgação para diferentes mercados. É preciso pensar em livro, não a mídia em que ela se apresenta. Procurando uma definição do que seria livro, lendo mais afundo o verbete do Dicionário Houaiss da Lingua Portuguesa, acho essa definição: “considerado também do ponto de vista do seu conteúdo: obra de cunho literário, artístico, científico, técnico, documentativo etc. que constitui um volume […] em qualquer suporte”. Muito mais certo, ao meu ver, para o mundo plural em que vivemos.

Bibliografia consultada:

FAILLA, Zoara (Org.). Retratos da Leitura no Brasil 4. Rio de Janeiro: Sextante, 2016.

HASLAM, Andrew. O livro e o designer II: Como criar e produzir livros. São Paulo: Rosari, 2006.

MEGGS, Philip B.; PURVIS, Alston W. História do Design Gráfico. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

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