Sangue de homens homossexuais deixa de ser rejeitado após decisão do STF

A restrição, imposta pela Agência de Vigilância Sanitária e pelo Ministério da Saúde, foi derrubada no dia 8 de maio de 2020 por 7 votos a 4

ana
doareviver
6 min readMay 19, 2020

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Filipe Davi / Arquivo Pessoal

Após dias de ansiedade, regados de cuidados intensificados com a alimentação e saúde, Filipe Davi da Silva, de 23 anos, acordou cedo para se juntar aos amigos da Faculdade de Tecnologia Ipiranga, no hemocentro do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Era dia 18 de fevereiro de 2020 e ele participaria de uma mobilização para doação de sangue que fazia parte de uma ação promovida por uma organização estudantil da própria faculdade, da qual Filipe Davi é aluno. Teria sido a segunda doação do paulista, se ele não tivesse sido barrado por revelar sua orientação sexual.

Na primeira vez em que procurou o hemocentro, em 2015, o fato de não ter uma vida sexual ativa fez com que Filipe Davi se encaixasse nos requisitos em vigor e pudesse realizar a doação. Embora tenha tomado todos os cuidados necessários, expostos em sites oficiais e folhetos informativos, a ausência de uma abstinência sexual de 12 meses foi fator decisivo para que ele fosse impedido de realizar o mesmo gesto. “O que mais me indignou foi o fato de não importar minha responsabilidade na vida sexual, pois sempre usei camisinha, não me exponho a situações de risco e meu último teste para DSTs estava ok”, relata o estudante.

A animação, resultante da possibilidade de contribuir com outras pessoas, foi substituída pela descrença. Isso porque, segundo ele, o fato de estar bem alimentado, evitar frituras, não ingerir álcool e outras substâncias, foi ignorado para dar espaço ao preconceito. “Eu estava bem animado em doar sangue pela segunda vez, até porque, segundo o que é divulgado, uma atitude tão simples pode salvar até quatro vidas. Eu senti na pele e na consciência claramente um preconceito institucional/estrutural, porque meu sangue foi recusado só por eu ser gay. Até comentei com uns amigos, saindo do hospital, que se eu fosse um hétero, com comportamento sexual duvidoso, sem nunca ter feito um teste de DST na vida, eu estaria mais ‘adequado’ a doações”, afirma Filipe Davi, que apesar de ter um prévio conhecimento sobre o assunto, não sabia com exatidão o funcionamento da restrição.

O sangue de Filipe Davi está nas estatísticas — que nem sempre são boas para um país. No último Censo Demográfico realizado pelo IBGE, em 2010, 101 milhões de homens viviam no Brasil. Desses, 10,5 milhões se declararam homo ou bissexual. Se cada um deles doasse sangue quatro vezes ao ano, o país deixaria de desperdiçar 18,9 milhões de litros de sangue anualmente. A restrição, imposta pela Agência de Vigilância Sanitária e pelo Ministério da Saúde, no entanto, foi derrubada no dia 8 de maio de 2020 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) com a maioria dos votos (7 a 4).

O que se sabe sobre a limitação

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Pela norma, homens que tiveram relações sexuais com outros homens nos 12 meses anteriores a tentativa da doação não podem doar sangue em função dos riscos de transmissão de doenças infecciosas. A restrição, de acordo com o Centro de Estudo Mário Roberto Kazniakowski (Cemark), entidade vinculada ao Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina (Hemosc), tem a finalidade de proteger os receptores de transfusões. O órgão segue a literatura que afirma que a relação sexual entre homens está relacionada a um risco aumentado de transmissão de agentes infecciosos e por esse motivo os mesmos são considerados inaptos temporários para a doação de sangue.

De acordo com a equipe de bioquímicos do Cemark, diversos testes são realizados a fim reduzir o risco de uma transmissão de doenças infecciosas por transfusão, levando em consideração que o procedimento não tem a garantia total de segurança. Este fator, segundo o órgão, se deve à circunstância de que não há atualmente no mercado mundial nenhum exame que apresenta 100% de sensibilidade e especificidade, apesar dos existentes serem altamente sensíveis. “Nenhuma transfusão é 100% segura, visto que todos os exames apresentam um limite de detecção nos primeiros dias de infecção, a chamada janela imunológica. A janela imunológica se caracteriza pelo período compreendido entre a contaminação da pessoa por um determinado agente infeccioso (HIV, hepatite, entre outros) e a sua detecção nos exames laboratoriais”, explica.

No entanto, o Cemark defende a não existência de um preconceito com a justificativa de que, como a relação homossexual entre mulheres não está relacionada com um risco aumentado de transmissão de agentes infecciosos, elas não sofrem restrição à doação. O órgão ainda cita a Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular, que diz: “não se trata, portanto, de discriminação ao público LGBT, visto que esse grupo pode doar sangue desde que respeitado o prazo de 12 meses (período que, com segurança, talvez possa ser reduzido) e também porque homossexuais do sexo feminino não estão sujeitas a inaptidão temporária”.

Uma nova perspectiva

Hoje, considerada inconstitucional e discriminatória pelo STF, a restrição que impede homens homo e bissexuais de realizarem doações de sangue sem abstinência sexual de 12 meses segue em vigor — mesmo em um momento tão necessário para um país que tenta se manter firme em meio à pandemia da COVID-19. Isso porque, de acordo com o Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Ministério da Saúde (MS) ainda não enviaram as novas diretrizes referentes ao assunto.

Ainda assim, a decisão da mais alta instância do poder judiciário brasileiro reflete mais uma conquista da comunidade LGBT e vai se juntar a lutas já travadas com relação ao casamento homoafetivo, à criminalização, entre outras pautas. O coordenador nacional do Diversidade23 e da aliança nacional LGBTI no senado, Eliseu Neto, comemorou e ressaltou a importância da decisão. “A comunidade LGBT faz parte do Brasil, ama este país e quer ajudar. Agora na pandemia e sempre. São 18 milhões de litros deixados de fora anualmente por uma norma atrasada”.

Eliseu é psicanalista, psicopedagogo, professor universitário e consultor da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura / Reprodução

Eliseu é um dos responsáveis pela Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 26), aprovada pela Corte máxima no dia 13 de junho de 2019, que culminou na criminalização da LGBTfobia no Brasil, incluída na Lei do Racismo. O coordenador do Diversidade23 cita a fala do ministro do STF e relator da ação, Edson Fachin, para afirmar a necessidade de dar fim ao preconceito na questão das doações. “Todo sangue deve ser testado. Temos a tecnologia necessária para isso. Como disse o relator, Fachin, orientação sexual não contamina ninguém, o preconceito sim”, pontua.

Ewerton / Arquivo pessoal

Com a mudança, que deve entrar em vigor em breve, Ewerton Oliveira também poderá voltar a doar sangue. O publicitário realizava as doações quando era mais novo e, por conhecer a restrição, escondia a orientação sexual para continuar contribuindo. No entanto, depois de um tempo, decidiu que não iria mentir mais e, desde então, parou de doar. Para ele, o impedimento era parte de um sistema preconceituoso e obsoleto. “Um atraso que mostra o quão preconceituosa é a nossa sociedade e como isso é, ou era, aceito pela grande maioria”, analisa o paulista.

Ewerton destaca que a baixa adesão de doadores, que diminui a procura por informação, e o apagamento que as minorias sofrem culminam na redução de importância da causa para quem não é afetado. Além disso, para ele, o problema ainda não acabou, mesmo após a decisão positiva do STF. “A luta nunca se encerra. Até a implementação e garantia do cumprimento em 100% dos lugares tem um caminho a ser percorrido ainda”, conclui.

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