Três vezes vida

Maria Salete, de 70 anos, teve contato direto com doações de vida três vezes e hoje celebra a vida com alegria e gratidão

ana
doareviver
4 min readJun 4, 2020

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Durante alguns anos, Maria Salete Freccia Coelho lutou silenciosamente contra a hepatite C, doença caracterizada pela inflamação do fígado. No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, há 11,9 casos para cada 100 mil habitantes. O diagnóstico, de acordo com Maria Salete, veio tarde e trouxe complicações. Com o tratamento garantido pelo Sistema Único de Saúde, a moradora de Jaguaruna foi encaminhada para o Hospital Dom Vicente Scherer, referência internacional em transplantes de órgãos e tecidos, que fica em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul.

Dois anos antes do transplante de fígado que determinou a cura da doença, Maria Salete travou lutas importantes com a cirrose hepática, resultado de inflamações e agressões crônicas como o ataque do vírus causador da hepatite C. Em uma delas, a retirada do baço foi a única solução e a paciente vivenciou a força da doação de vida. “Na época em que eu fiz a cirurgia no baço, eu precisei muito de doadores de sangue. Foi feita uma campanha em Jaguaruna, pediram 30 doadores e apareceram mais de 100”, conta em tom de satisfação.

Após a lenta recuperação, necessária em decorrência da retirada do baço, Maria Salete entrou para as estatísticas por ser uma das 965 pessoas que passaram por transplantes hepáticos em 2005, de acordo com a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). “Eu nunca tinha imaginado de um dia ia fazer um transplante. Eu sei que eu estou com o órgão de outra pessoa dentro de mim, então isso aí é uma benção de Deus. Se todas as pessoas pensassem em ser doadoras, muita gente deixaria de morrer”, ressalta a receptora, hoje com 70 anos.

Com o desafio de manter cuidados essenciais, Maria Salete segue grata pelo gesto de amor que recebeu, como prefere dizer. “Eu me sinto muito feliz. Apesar dos cuidados, eu vivo uma vida praticamente normal e posso dizer que tenho quinze anos de lucro”, comemora. Mesmo curada, segue pontualmente as indicações médicas e vai a Porto Alegre de seis em seis meses para manter o monitoramento de saúde.

O desafio: superar as estatísticas e recomeçar

Um fígado inteiro só é possível de se obter de um doador morto, mas a doação em vida culmina na doação de parte do fígado — que se regenera / Foto: GTH

No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) é responsável por 96% dos transplantes de órgãos realizados, de acordo com o Ministério da Saúde. O transplante hepático, pelo qual Maria Salete passou, é o segundo tipo mais comum, resultado do fato de que o procedimento é a única opção em casos em que o fígado de pacientes deixa de funcionar. Só no primeiro trimestre de 2020, a ABTO registrou 592 transplantes de fígado, procedimento fica atrás apenas do transplante de rim — que registrou 1.525 cirurgias.

Maria Salete, no entanto, vivenciou outra estatística. Anos antes do diagnóstico da hepatite C, em meados de 1960, um aborto espontâneo fez com que ela precisasse de uma transfusão de sangue. O procedimento, apesar de ser realizado após exames altamente sensíveis, culminou na transmissão do vírus causador da doença. O bioquímico Geverthon Rodrigues, do Centro de Estudo Mário Roberto Kazniakowski (Cemark), explica que não há no mercado mundial nenhum exame que apresenta nível máximo de sensibilidade e especificidade, portanto, nenhuma transfusão é 100% segura.

De acordo com o Cemark, instituição diretamente ligada ao Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina (Hemosc), todos os exames apresentam um limite de detecção nos primeiros dias de infecção, a chamada janela imunológica. Essa se caracteriza pelo período compreendido entre a contaminação da pessoa por um determinado agente infeccioso (HIV, hepatite, entre outros) e a sua detecção nos exames laboratoriais. “Nesse período da janela imunológica, os exames de triagem podem apresentar-se não reagentes, mas o vírus pode estar presente no doador e, consequentemente, ser transmitido por meio de transfusões”, afirma o bioquímico.

Para reduzir o risco de uma transmissão de doenças infecciosas por transfusão, é adotado um conjunto de testes de triagem que visa reduzir o tempo de detecção do agente infeccioso o máximo possível. Para marcadores dos vírus transmissores da Aids (HIV) e hepatites B (HBV) e C (HCV), são utilizadas duas metodologias, como explica Geverthon. “Há a sorológica, que detecta os anticorpos do doador e testes de detecção de ácido nucleico (NAT), atuando na detecção do vírus. O NAT reduz sensivelmente a janela imunológica ou o tempo em que o vírus permanece indetectável por testes, de 22 para 10 dias no caso do HIV. Para as hepatites, de 70 para 10 a 20 dias (HCV e HBV)”.

Em virtude da limitação universal dos testes, a fase de triagem clínica é fundamental para avaliar o estado atual do candidato à doação / Foto: Venilton Kuchler/Arquivo AEN

Após o período de janela imunológica, os testes apresentam-se reagentes e, a partir daí, são detectáveis ao longo de toda a vida. Maria Salete, mesmo tendo vivenciado a experiência negativa da primeira transfusão, compreendeu os riscos e segue grata pela oportunidade de ter sido amparada quinze anos depois, tanto por doações de sangue quanto pelo próprio transplante hepático. “Isso aí, pra mim, é uma gratidão sem tamanho. Eu mesma sempre quis ser doadora de sangue, mas como não posso, indico para os que podem”, finaliza.

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