Vidas cruzadas por doações

Em comum, Vilmar e Almir carregam histórias de doação de vida

Doar é Viver
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5 min readJun 4, 2020

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A vida de Vilmar Lauro de Souza mudou em 1978. Depois que sua irmã mais nova foi diagnosticada com insuficiência renal, toda sua vida parou para que ele pudesse ajudá-la. Ao saber que ele era o único a conseguir doar um rim para ela, não pensou duas vezes e se afastou do serviço, arrumou uma mala e foi ao encontro de Neide de Souza Martins, no Hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo.

Vilmar Lauro de Souza, 71 anos, doador de rim / Foto: Arquivo pessoal

Ao contrário do que se imagina, a recuperação de Vilmar foi muito mais complicada que a de sua irmã. “Ela passou melhor do que eu”, conta. Mesmo não conseguindo explicar com exatidão o que aconteceu há 42 anos, ele descreve uma lembrança da época. “Me acordei e tinha um ventilador nos pés, um outro na cabeça e uma enfermeira do lado. Ai logo eu falei: moça, o que está acontecendo e ela disse: ‘você já esteve pior’. Fiquei assustado, mas soube depois que me deu muita febre”,. A filha, que na época tinha cinco anos, conta que o tio paterno chegou em casa e falou que seu pai “estava em uma situação complicada”. Em seguida, a família foi ao seu encontro.

Depois de uma semana de internação, Vilmar restabeleceu a saúde. Sua irmã, que se recuperou bem após a cirurgia, viveu por mais 29 anos com o rim doado por ele, mas faleceu em 2005 em decorrência de uma cirrose hepática, avanço de um câncer no fígado. A doença, no entanto, está no DNA da família. O caso de Neide foi o quarto registrado. Alguns anos antes, sua irmã mais velha também foi diagnosticada com insuficiência real e recebeu o transplante do pai deles. Porém, em decorrência de uma rejeição, ela também perdeu a vida.

O outro lado

Segundo os dados divulgados pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) em 2019, a sorte que Neide teve, de ter um transplante aparentado, representa apenas cerca de 17% dos transplantes renais no país. Almir Martins, de 68 anos, não teve a mesma sorte. Em 2012, uma série de exames levaram o advogado imbitubense e também diácono da diocese de Tubarão ao diagnóstico de esteatose hepática, doença caracterizada por um acúmulo de gordura nas células do fígado. Por seis anos, passou por tratamentos intensos, entre eles a paracentese, procedimento que consiste na drenagem de líquidos concentrados em um órgão que, no caso de Almir, era o fígado.

Almir em processo de recuperação oito dias após o transplante / Foto: Arquivo pessoal

De três a quatro dias por semana, Almir retirava do fígado cerca de 6 a 7 litros de fluidos. Quando não fazia o procedimento, sentia inchaço, agonia e dor intensa. “Sofri muito, a ponto de pedir para morrer”, conta. Para realizar o tratamento, Almir ia diversas vezes até Tubarão, onde era acompanhado de perto pelo seu médico. Em uma dessas visitas ao consultório, recebeu o encaminhamento para um especialista em transplantes de fígado do Hospital Santa Isabel, instituição localizada em Blumenau que em 2016 realizou o maior número deste tipo de transplante, de acordo com Comissão Hospitalar de Transplantes da entidade.

Sem o transplante, Almir estava desenganado, ou seja, de acordo com os médicos não haviam esperanças com relação a outros tratamentos. Em virtude deste fato, recebeu a chamada “unção dos enfermos”, também conhecida como “extrema-unção”, um dos sacramentos católicos. Apenas recebem esse sinal da graça de Cristo aqueles atingidos pela velhice em estágio avançado ou perigosamente doentes, para que tenham alívio, perdão e salvação. Após ser ungido, em 2018, voltou para Blumenau, onde alugou uma casa próxima ao hospital na esperança da realização de um transplante.

Como não teve a mesma sorte de receber um transplante aparentado, Almir precisou ser paciente e aguardar o gesto de doação de algum desconhecido. No dia 28 de março daquele mesmo ano, o imbitubense foi informado de que havia um órgão disponível. “Tarde da noite me chamaram dizendo que apareceu um fígado que não era apto para entrar na fila do transplante, mas que era preciso arriscar. O órgão ainda não havia sido testado, mas mesmo assim a família assinou um termo, válido até hoje, que estava consciente deste fato. Assim eu pude finalmente fazer o transplante”, explica.

Segundo histórias escutadas por Almir no hospital, o fígado que salvou sua vida era de uma pessoa jovem, de aproximadamente 23 anos. “A família não queria doar, mas respeitaram a vontade da pessoa que sempre dizia que queria ser uma doadora de órgãos”, acrescenta a esposa do transplantado, Maria Margarete Brum Martins. De acordo com ela, o ato que salvou a vida do marido precisa ser amplamente discutido. “Eu falo isso porque este é um assunto que não falávamos aqui em casa, até aparecer a situação do Almir”, explica a companheira no amor e na fé.

Almir e a esposa, Maria Margarete, que o aconselhou a fazer exames antes da descobra da doença / Foto: Arquivo pessoal

Em comum, Vilmar e Almir carregam histórias de doação de vida. Vilmar, por poder doar parte de si ao outro, e Almir, por ter sido beneficiado por essa atitude. “Eu sempre tive comigo que depois da nossa morte, vale a nossa vida. Não os nossos restos corporais. Se Jesus saiu da sua zona de conforto e deu a sua vida por nós, imagine nós, pobres humanos mortais”, afirma o religioso Almir em tom de gratidão. “Precisamos também sair da nossa zona de conforto na hora da nossa morte e dizer para a nossa família que somos doadores. Doar é um gesto de amor”, aconselha.

Apesar da doação, a condição genética da família de Vilmar também o atingiu. Há quatro anos, o aposentado descobriu a presença da insuficiência renal. Portador de diabetes e hipertensão, enfermidades que atingem diretamente o rim, ele mantém uma rotina de cuidados intensa, que inclui acompanhamento com um nefrologista, profissional especialista em estudos e cuidados com o rim. Hoje, mesmo com o risco de precisar também de um transplante, ele recomenda o gesto. “Se alguém pode fazer isso, faça. Doei e estou aqui até hoje. Doei com 28 anos e estou prestes a fazer 72 já, graças a Deus”, finaliza.

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